A Tomada
de Ceuta
«Sabia se já que o ancoradouro da praça era bom.
- Que lhe dissessem as disposições dele, inquiria o rei.
E o prior, com modo grave, respondeu-lhe:
- Que Sua Real Senhoria mandasse vir para ali duas cargas de
areia e umas fitas e meio alqueire de favas e uma escudela de pão.
O rei pasmou. Mas o prior retorquiu:
- Sem isso nada vos direi, senhor.
- Ora, sus, dom Prior - dizia o Rei, a rir, a rir, quereis
usar de feitiços como o capitão de “astrolomias”?
Mas Álvaro Camello pondo um joelho no lajedo da sala onde falavam,
e tendo-se-lhe trazido os objectos que requisitara, ali principiou a traçar em
relevo, no chão, a topografia de Ceuta; as colinas, o monte da Almina, os
quarteirões de casas, as abras, os ancoradouros. O rei João, atento, olhava. Os
Infantes curvavam-se, numa curiosidade, examinando; e em meio deles, Henrique
destacava-se mais que todos atento, um vinco de meditação na fronte larga, o
olhar carregado e fito, a mão direita segurando o queixo. Nenhum se interessava
mais do que ele nessa conquista da cidade querida do Maghreb; já se imaginava a
desembarcar naquelas praias, a escalar aquelas quadrelas, a erguer o seu balsão
na muralha branca de Mohammed.
- Ora aí tendes, senhor, as minhas feitiçarias!, dissera o prior.
Ao que João I respondeu:
- Bem avisado sois e sages, meu cavaleiro!
E afastaram se todos, comentando e meditando no caso.
O infante Henrique gravou na mente todo aquele mapa que
Álvaro Camello traçara ali no ladrilho da sala do paço de Sintra, e o seu
pensamento irrequieto começou desde então a divagar por aquelas colinas e
muralhas, enseadas, torres e casarias.
Ia-se decidindo pouco a pouco a expedição. O rei João
resolveu-se a falar a D. Filipa em ir combater os mouros.
A virtuosa dona resignadamente aceitava a ida dos infantes;
filhos de reis deviam ser cavaleiros. Sim, os infantes deviam ir; quisera ela,
a boa mãe, que bem próximo estivesse já o dia em que cingisse com suas mãos
amoráveis as espadas de heróis aos filhos queridos; dar-lhes-ia ela também uma
coroa de beijos e um colar carinhoso de abraços. Mas para que havia de ir
também o rei? Não ganhara já tanta glória no passado combater? Que descansasse
das fadigas das guerras; que se dedicasse unicamente às da governação do
Estado, já não era pequeno o labor Lembrasse-se que ia declinando na
existência, como ela também; que descansasse a seu lado até à morte que bem
cedo podia vir. João I estremecia e hesitava. As palavras suaves da esposa
infundiam-lhe na alma uma impressão religiosa, como se fossem invocações de
litanias.
Queria ceder; mas o temperamento meridional, ardente,
arrebatava-o e retorquia:
- - Era mister que ele se fosse purificar derramando o sangue dos infiéis em combate leal e perigoso, ele que só na guerra entre cristãos ganhara as suas palmas de vitória.
- Podia, objectava a Rainha, perder num lance arriscado toda
a glória e fama, que em sua vida conquistara.
E o Rei
com as mesmas razões de purificar-se, combatendo os inimigos da religião de Cristo,
retorquia sempre. E D. Filipa piedosa como era, numa época tão característica do
valor bélico, sentiu a alma retrair-se ao lembrarem-lhe o serviço de Deus. Talvez
que no seu íntimo suave desabrochasse o pensamento que nenhum serviço podia a Deus
prestar a guerra, bem antagónica da ideia de paz e de amor universal que da ‘Essência
Divina Dimana’, talvez, mas esse pensamento guardou-o ela, timidamente. João I
não insistiu com a esposa e resolveu adiar a sua decisão. Falaria ao Condestável;
esse era um oráculo; grave e solene ia já penetrando em vida no templo glorioso
que os louvores póstumos erigem. Ele diria da expedição o que a sua grande alma
parecesse bem. Era considerado um santo; tinha uma serenidade de quem se desprende
das ambições do mundo, a pouco e pouco, gostosamente. Resolveu el rei falar-lhe.
Não o chamaria à corte; isso dava nas vistas; comentar-se-ia de variados modos o
caso; o povo imaginar-se-ia em vésperas de algum rompimento lá das bandas de Castela
de onde a sanha dos vencidos era ainda mal represada.
E João
I queria que todos os preparativos do cometimento fossem discretamente conduzidos.
Estavam em Santarém e então o rei combinou com os infantes uma certa caçada, em
que se reuniriam num ponto onde fosse fácil encontrarem-se com Nun'Alvares. Os infantes
Duarte e Henrique partiram pois um dia, com monteiros e falcoeiros, em direcção
às terras de Arraiolos. Andaram por lá a montear, dois meses a mais que não menos;
e ao fim desse tempo o rei disse um dia ao infante Pedro:
- - Filho, apesar de velho ainda posso galgar os montes e bater os matagais a perseguir os javardos. Teus irmãos lá andam em sua folgança de montear. Vamos também reunirmo-nos com eles; seguiremos a ribeira de Mugem; nessa direcção encontrá-los-emos.
Assim
fizeram, e passando a seguir a margem da ribeira de Sor, chegaram às proximidades
de Coruche. Então disse o rei para os do séquito:
- - Os meus lebréus estão cansados; não podem com a montaria sós, carecem do incentivo de outros bem folgados. Ide pois procurar aí por essas devesas algum solar de nobre que tenha seus lebréus e mos empreste.
Lembraram o Condestável, e o rei apoiou, sorrindo. Mas esse sorriso
só o compreendeu o Infante Pedro (28)». In
Alfredo Alves, D. Henrique o Infante, Typografia do Commercio do Porto, 1894G
286, H5A53, Porto.
Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT