quinta-feira, 3 de maio de 2012

A nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada. Fernando Pessoa. «Vemos, pois, que o valor dos criadores literários corresponde ao valor criador das épocas a que correspondem; de modo que a literatura não só traduz as ideias da sua época mas, e é isto que importa que fixemos, o valor da literatura, perante a história literária, corresponde ao valor da época, perante a história da civilização»


Desenho de Almada Negreiros
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«Vejamos agora como se nos mostram os correspondentes períodos políticos. O primeiro,
“ancien regime”, foi um período em que a França nada criou “para a civilização”, visto que criou apenas a sua própria grandeza e a correspondente hegemonia social europeia, cujo reflexo longínquo e fraquejante é a influência de que ainda goza. O segundo período é aquele que, precipitando-se na prematura Revolução Francesa, se vai realizando só depois, “nas almas”, de 1848 a 1870, pouco mais ou menos, e é neste período que a França cria para a civilização a ideia de “democracia republicana”. Não a cria, ê claro, tão criadoramente como a Inglaterra de Cromwell, que a “origina” no mundo moderno; torna-a porém mais intensa e nítida, desenvolve-a, o que é também, ainda que secundariamente, uma criação. Finalmente, no terceiro período, o de 1870 para cá, a França nada cria para a civilização, nem mesmo a sua própria grandeza cria, visto que decai em valor europeu: vai vivendo, como a Inglaterra no segundo período, e realizando, apática e despiciendamente, o princípio de democracia republicana que em anterior período criara.
Posto isto, analisemos. Em primeiro lugar, é evidente a analogia, quanto a valor civilizacional, e, portanto, a vitalidade nacional, entre o primeiro período francês e o terceiro inglês, entre o segundo período francês e o primeiro inglês, e entre o terceiro período francês e o segundo da Inglaterra. Tão perfeita é a analogia social e civilizacional como a analogia literária. A literatura inglesa atinge o seu auge no primeiro, a francesa no segundo período.
São relativamente ricas, a inglesa no terceiro período, a francesa no primeiro. E a inglesa no seu período segundo e a francesa no terceiro seu estão no mesmo nível de abatimento literário perante os outros períodos.
Vemos, pois, que o valor dos criadores literários corresponde ao valor criador das épocas a que correspondem; de modo que a literatura não só traduz as ideias da sua época mas, e é isto que importa que fixemos, o valor da literatura, perante a história literária, corresponde ao valor da época, perante a história da civilização.
Avançando na análise, porém, revela-se-nos que a posição cronológica das literaturas se dá, relativamente aos correspondentes movimentos sociais, de modo diverso nos três períodos. Assim, no primeiro período, o criador, da Inglaterra, o movimento literário que culmina em Shakespeare (entre 1590 e 1610) precede o movimento político, que só começa ao decair ele. E, em França, o movimento romântico vai decaindo à medida que se vai realizando nos espíritos o correspondente, e socialmente exuberante, movimento político.
No segundo período inglês e terceiro francês, análogos como já vimos, a corrente literária “vem depois” da corrente política que lhe corresponde; como em França se vê pelo aparecimento dos movimentos simbolista, realista e outros, claramente, nos anos que sucedem àqueles em que se consolidou a república; e em Inglaterra pelo facto de Pope, em quem a corrente literária culmina (Dryden, talvez maior, é um poeta de transição, pertencente em parte ainda ao período anterior), ser da geração seguinte à dos consolidadores da nova fórmula, característica da época, a de monarquia constitucional.
No terceiro período inglês e primeiro francês temos a coincidência no tempo entre a corrente e culminâncias literárias e o movimento e culminâncias políticos». In Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada, Editorial Nova Ática, 2006, ISBN 972-617-193-8.


 Cortesia de Editorial Nova Ática/JDACT