segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Leituras. Os Venturosos. Alexandre Honrado. «El-Rei em tudo isto o que mais cultiva ainda é a música, paixão antiga… Embora as suas muitas penas o levem cada vez menos a celebrar coisa que seja… - Tragam flautins e outros sopros, e cordas que se ‘tanjam’. Quero ouvir música no meu palácio»

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«E mesmo em caças, artes que requerem silêncios, El-Rei leva músicos tal é o ‘prazimento’... Aliás, eram frequentes, no tempo da sua melhor disposição, os passeios ao campo e aos rios, com acompanhamento musical. Muito característicos, em época de folguedo e divertimento, os passeios em rio, que no reino há um maior do que todos e que é o Tejo, e até soía estar em suas margens grandes lezírias que o rio, bruto, leva por vezes com ele e ocupa.
El-Rei ia pelo Tejo, primeiro pelas margens, em bons locais de embarcação, onde recebia singular recebimento de batéis e outros muitos navios, albetoças, barcas e todos toldados de grande perfeição. Uma vez, essa vez guardava em memória por ser a que mais lhe agrado captou, embarcara em uma grande alivadoura, toda toldada de brocado com muitas bandeiras de seda e alcatifada e muitas almofadas de brocado e batéis à volta que a levavam à toa, com os remeiros todos vestidos de libré das cores da princesa que então era viva, e os batéis muito embandeirados e pintados todos e os remos mui enramados e neles muitas folias de homens e de mulheres muito bem vestidos das cores da princesa e muitos entremezes e festas. E em El-Rei embarcando fez-lhe um conde uma surpresa e saiu o conde de uma ponta onde estava escondido, com grande soma de barcas e batéis muito embandeiradas e enramadas e todas com muitas bombardas que tiraram e com muitas trombetas e atambores e grandes gritas, que pareceu muito bem. E com estes batéis e barcas e outros muitos era o rio coberto deles, todo com folias, prazeres e ,entremezes e muitas trombetas bastardas, muitos atambores, muitas charamelas e sacabuxas, muitas infindas bombardas, que foi muito alegre festa por ser no Tejo, ai que tempo de saudades…
Nesse tempo e no tempo em que estava na capital do reino nos domingos e dias santos e em que não ia à carreira e em alguns da semana ia folgar em um batel embandeirado de seda levando sempre consigo música e algum oficial seu com que ia despachando e as mais das vezes chegava ao cais dos paços de Santos-o-Velho onde o Duarte, cavaleiro de sua casa, ou o Gil, camareiro-mor, a quem em parte de satisfação de seus serviços dera o oficio de guarda dele, lhes mandava trazer de merendar de muitas frutas verdes, conservas e coisas de açucar, vinho e água, de que também comiam os fidalgos que a seu chamado e se El-Rei estivesse de tal feição prazenteira, iam com ele no batel e assim toda a mais companhia de músicos, moços fidalgos da câmara e remeiros, para as quais merendas tinha mercês ordinárias que lhe El-Rei para isso fazia… Ai que saudades…
El-Rei em tudo isto o que mais cultiva ainda é a música, paixão antiga… Embora as suas muitas penas o levem cada vez menos a celebrar coisa que seja… - Tragam flautins e outros sopros, e cordas que se tanjam. Quero ouvir música no meu palácio. Eh, lá, D. Bosta, quereis dançar para nós?
O nobre Ataíde sentiu-se corar de humilhação. Não encarou seu rei para responder. Levantou-se e deitou a fugir e fugido andava quando deu com a entrada para a cozinha real. Uma azáfama de fogos, fumos, caldeirões e aves depenadas. Um calor de morrer. Um cheiro de estontear. Mesmo assim, Ataíde sentou-se a um canto, a sossegar. O primeiro a topá-lo foi o cozinheiro-mor, homem de grande sabedoria e que fora à Índia com Vasco, o navegador, e os seus... Recém-chegado, trouxera novas e muitas sabedorias de espantação variada, e não deixou de relacioná-las com o ar triste do fidalgo.
Ousado, chegou-se o cozinheiro-mor a ele e perguntou-lhe que inquietação era a sua, de que penas sofria. Ataíde, talvez da ocasião, do ambiente, do cansaço, desabafou. Contou a sua pouca sorte, a pequeníssima vontade de viver, o seu desinteresse, a sua apatia, a imbecilidade, o estupor em que vivia... Os seus tormentos. A sua inabilidade para as pujanças requeridas num novo século cheio de coisas tão vividas e ousadas...
O cozinheiro-mor ouviu-o. Melhores são os cozinheiros em audições que os confessores; os cozinheiros são artistas da paciência em lumes brandos ou fervuras...
Da amálgama dos condimentos operam sábias alquimias...» In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT