«Se a guerra nos poupa, por que não havemos de conservar a nossa casa
em ordem, cada qual trabalhando, de modo que o quinhão de sofrimento que nos
cabe não seja avolumado com apetites de chacal?... Como se impunha, o Governo
tomou medidas para este género de situações. De quando em vez, os jornais
noticiavam a chegada de um carregamento especial de qualquer bem indispensável.
Assim aconteceu, por exemplo, em Junho de 1942, quando, numa manhã, chegaram à
estação de Santa Apolónia nada mais nada menos que quarenta vagões carregados
com quinhentas toneladas de batata. Na cena participavam os empregados que
enchiam as sacas, que pesavam as batatas, os marçanos que as vinham comprar
para as respectivas mercearias e agentes policiais que zelavam para que decorresse
dentro da normalidade a transacção do precioso tubérculo.
Os comerciantes apanhados em flagrante delito de consumo corriam, por
sua vez, o risco de pagar tais actos com a prisão. O que, para a população
muitas vezes ludibriada, ainda era pouco. Os protestos, oriundos de todo o
país, chegavam à Assembleia N……. e às páginas dos jornais. O mal-estar social,
tão temido pelo ditador Salazar, começava a fervilhar, o que a oposição,
nomeadamente o Partido Comunista, remetido para uma clandestinidade feroz, não
deixou de aproveitar.
Como se não bastasse, algumas manifestações de protesto dos utentes
foram violentamente acalmadas pela polícia-política do Estado Novo, o que, como se
imagina, redobrou a tensão acumulada. Por causa disso mesmo, o ditador Salazar
resistiu com todas as forças à implantação de uma política de racionamento. Mas
em finais de 1943 teve de ceder. A Intendência-Geral de Abastecimentos passou
então a tratar da distribuição das famosas senhas que davam acesso aos bens
racionados, muitos deles de primeira necessidade (açúcar, azeite, pão, bacalhau,
arroz, massas e batatas). Esta escassez durou muito para além do final
da Guerra, pelo menos até 1947. Em casa da avó da autora deste livro, as
famosas senhas de racionamento, nomeadamente para o açúcar, foram preciosidades
que quase atingiram o início da década de 50.
Combustíveis
Se, na normalidade, os transportes públicos de Lisboa já deixavam muito
a desejar, a Guerra agravou a situação. As últimas tipóias, abandonadas
décadas antes, quando o automóvel se tornara um sinal exterior de modernidade,
voltaram à rua, devidamente polidas. O carvão, essencial quer aos transportes
(nomeadamente ao caminho-de-ferro) quer à vida doméstica onde era utilizado,
especialmente nos grandes antepassados dos fogões, os fogareiros, determinaria,
no primeiro caso, a redução de carreiras e, no segundo, a preferência por
alimentos de confecção rápida.
Em 1940, ainda antes de as coisas piorarem em matéria de
abastecimentos, já alguns restaurantes e outros estabelecimentos do género
procuravam adaptar-se à nova situação. Surgiria, pois, um forno económico que
Lisboa veria pela primeira vez numa pastelaria da Rua Voz do Operário.
Tratava-se de um forno aerotérmico construído pela Empresa de Fornos Modernos,
de que era director técnico Marcelino Fortunato, mestre da que fora a
panificação da Manutenção Militar e, muito importante, das padarias da Grande
Guerra. Ou seja, sabia, por experiência própria, o que significava a escassez
de combustível em tempo de guerra. Este forno, em vez do gás ou do carvão
habituais, consumia lenha, e não muita, por sinal. Como o Diário de Lisboa noticiava, entusiasmado, em 14 de Outubro de 1940,
ele consumia, por hora, dez quilos de lenha, que custam 1$50 dando a garantia
de cozer 150 quilos de pão e podendo, ao mesmo tempo, fornecer águas quentes e
aquecimento central. A gradual instalação destes fornos nos estabelecimentos
hoteleiros de Lisboa constituía, pois, segundo este jornal, um assunto;
- ‘de interesse nacional e de interesse para os proprietários de padarias, pastelarias, fábricas de biscoitos, hotéis, cafés, restaurantes e internatos e para as administrações de quartéis, hospitais, asilos, grandes escolas internas oficiais, etc.’.
Os restaurantes de Lisboa não viviam, aliás, um bom momento. Nesse mesmo
mês de Outubro, em que alguns pensavam instalar um forno que lhes permitisse
enfrentar as agruras da guerra sem percalços de maior, desapareciam nomes
simbólicos da Lisboa boémia. O Leão Triste da Rua l.º de Dezembro
seguia o mesmo caminho que, anos antes, fora trilhado pelo Vigia da Avenida, o Silva
do Chiado, o Gibraltar de Corpo Santo e o Estrela de Ouro da Rua da
Prata. O Vigia vinha de 1832 e o Gibraltar, muito frequentado pela
marinhagem inglesa, fora contemporâneo da Taverna Ingleza, a que Eça se
referia. Como se não bastasse esta necrologia,
nesse mesmo mês de Outubro de 1940, o Tavares Rico e o Tavares
Pobre entraram, com todos os seus pergaminhos, em leilão judicial. A
esta crise não seriam estranhas as dificuldades sentidas pela maioria da
população. Cálculos apresentados pelo Diário de Lisboa provavam que só 7%
da população alfacinha tinha o extravagante hábito de se sentar à
mesa dum restaurante.
- Compreende-se assim que o restaurante seja como uma espécie de lareira vazia, escrevia o jornalista, desgostoso com tanta tradição desperdiçada.
Açambarcava-se e especulava-se com o petróleo e derivados, nomeadamente
com a gasolina. O Governo, mais uma vez, mostrou-se impotente para resolver o
problema. Se chegou a pôr em prática uma política de construção de petroleiros próprios,
se estabeleceu acordos com os aliados para obtenção de privilégios na exportação,
se favoreceu a produção de combustíveis de substituição (óleos de peixe e de
bagaço), tudo isso, no entanto, se revelaria extremamente insuficiente». In
Maria João Martins, O Paraíso Triste, O Quotidiano em Lisboa durante a II
Guerra Mundial, Vega, Colecção Memória de Lisboa, 1994, ISBN 972-699-474-8.
Cortesia de Vega/JDACT