domingo, 1 de dezembro de 2013

Joana. A Louca. Rainha Joana I de Espanha. Linda Carlino. «A história de Joana decorre entre 1496 e 1555, sobretudo em Espanha, mas também nos Países Baixos e brevemente em França e em Inglaterra. Passa-se no período em que o rei Fernando de Aragão e a rainha Isabel de Castela, os Reis Católicos…»

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Casamento
«(…) Era o entardecer de meados de Outubro. Um ou dois dos cortesãos de Joana jogavam xadrez, outros jogos de cartas, enquanto outros preferiam conversar. Os músicos tocavam uma das suas baladas preferidas. Flautas e uma viola de gamba acompanhavam dois cantores, enchendo a sala com a sua rica melodia. Sentada, enquanto escutava aquela terna história de amor não correspondido, deixou passear o olhar pela sala, uma das mais belas da mansão Berthout Mechelen. Encontrava-se ali havia seis dias e, durante esse tempo, a sua disposição e a da sua corte vinham a melhorar levemente. Um ar de expectativa substituíra o desânimo anterior. A espera e a incerteza terminariam em breve. Os pensamentos de Joana passaram da música aos maravilhosos acontecimentos dessa manhã. Margarida trouxera óptimas novidades: Filipe deveria chegar nesse dia à noite. Viria vê-la no dia seguinte e o seu casamento seria abençoado oficialmente na catedral daí a dois dias. Filipe ia chegar Vê-lo-ia no dia seguinte! Ficara tão entusiasmada que abraçou e beijou Margarida. As duas haviam-se tornado quase como irmãs. Sorriu ao recordar-se da animada conversa sobre os respectivos casamentos e de como tinham tentado vencer-se uma à outra no louvor dispensado aos respectivos irmãos. Joana sentia-se inquieta, pois sabia que não fora totalmente honesta com a futura cunhada. Não podia e não iria contar-lhe tudo sobre João.
Engoliu em seco, recordando-se das palavras que proferira e do que deixara por dizer. Referira a gaguez de João, mas não mencionara o facto que costumava perturbar os que o conheciam, sendo muito embaraçoso para os que não o conheciam. Porém, o pior de tudo, ficara muito longe da verdade em relação aos seus outros problemas de fala, para já não falar da sua timidez, do facto de o lábio inferior se estender tanto para além do superior, já de si defeituoso, que fazia com que... não, tivera o maior cuidado em evitar tudo isso, dizendo apenas que tinha uma voz indistinta e uma forma de falar muito desajeitada. Desculpou-se com a firme crença de que, assim que Margarida o conhecesse, logo descobriria como era uma pessoa maravilhosa, que era tudo o que interessava. Seria amada e protegida por uma pessoa delicada e compassiva. A sua nova vida junto dele compensá-la-ia inteiramente por todos os anos passados em França à espera de um casamento que acabara por não ter lugar, seguidos pelo longo período em que ficara detida e fora tratada pouco melhor que uma prisioneira, antes de lhe ser permitido regressar a casa. Como noiva do anjo, seria também alvo do amor e afeição da rainha Isabel.
Após afastar os remorsos, recostou-se no assento, sendo imediatamente acometida por outro. Ainda não escrevera para casa e já haviam passado três meses desde que partira de Espanha. Deveria fazê-lo em breve, mas não enquanto escutava as suas canções preferidas. O tambor, o tamborim e as flautas baixo e tenor tocavam agora uma alegre canção sobre uma jovem que guardava cabras e a quem os jovens pastores atormentavam.

Oh, menina que guardas as cabras
Com as saias pelos joelhos,
diz, bela menina das belas meias,
que gostas de nós, pobres pastores.

Acompanhou a música, marcando alegremente o ritmo com os dedos nos braços da cadeira. A música esmoreceu. Os cortesãos mais próximos da porta haviam sido os primeiros a ouvir os passos apressados e aflitos que se aproximavam, e as vozes alteradas, cada vez mais próximas. Fradique, de espada desembainhada, foi o primeiro a chegar-se à porta. O medo regressara e espalhara-se pela sala. Foram bruscamente recordados de que não passavam de estrangeiros numa terra estranha e que a sua senhora ainda não casara com o governante. Joana ficou sentada, tensa e aterrorizada. Pensava apenas na detenção de Margarida em França, quando o seu contrato de casamento fora quebrado. Iria este casamento dar em nada? Seriam aqueles sons ameaçadores o bater das botas dos soldados? As portas foram abertas bruscamente e Fradique, embainhando a espada, ajoelhou-se. - Fradique, almirante de Castela, Senhor. - Reconhecera-o dos inúmeros retratos que vira e não através da figura molhada e suja de lama que lhe estendia uma luva enlameada para que a beijasse. - Bem-vindo, dom Fradique. Na verdade, calorosas boas-vindas para todos. Muito me agrada recebê-los nas minhas terras e espero que a vossa estada seja agradável. - Fez sinal a Fradique e aos restantes que se levantassem e entrou na sala, procurando com o olhar. Os cortesãos olharam para o almirante em busca de uma explicação, mas este encolheu os ombros, abanou a cabeça, ergueu o olhar para os céus e murmurou para o camareiro-mor de Joana: - Parece impossível! Desafiou todas as regras do protocolo. Esperemos que se demore muito pouco, visto ter decidido dispensar uma audiência formal. Quantas vezes desde a nossa chegada tenho agradecido o facto de a rainha Isabel não se ver obrigada a testemunhar uma tal impertinência da parte deste jovem arrogante? Digo-vos que o sinto no âmago que é intenção dele insultar-nos com todos os seus actos. Joana ouvira as boas-vindas de Filipe. Ouvira-lhe a voz, forte e confiante, calorosa e enérgica. Qual seria o aspecto do dono de uma tal voz? Que pensaria dela? Entrou em pânico, pois chegara o momento do encontro e ela não estava preparada». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT