Goa
«(…) Não sucede já o mesmo em Salcete, se excluirmos os brâmanes,
classe abastada e inteligente, e a cujos principais membros cabe um lugar
singular nesta história. Com o poder de uma inteligência mais casuística que
sólida, guiados por uma constante ideia, têm eles podido, apesar da sua
inferioridade numérica, impor-se aos seus conterrâneos e ainda à metrópole,
onde eles disputam lugares aos europeus nos variados ramos da actividade
social. A singular apatia e desmoralização dos habitantes de Salcete têm a sua
explicação no facto de estarem expostos às incursões do ramo dravídico e nas
constantes perseguições religiosas, que acabaram por os tornar tímidos e
desconfiados. Onde, porém, a raça se conserva mais pura é exactamente onde o
catolicismo e a civilização europeia pouco imperaram. Ainda que semi-selvagens,
possuem um fundo moral e religioso superior aos conversos. As Novas Conquistas,
virgens em natureza e civilização, são mais domínios independentes, feudatários,
que nossos. Vivendo em uma região acidentada, em campos encastelados por altas
serranias, cortada de profundos vales, encristada de imponentes despenhadeiros,
sombreada por densas metas, regada de esteiros de água que inundam seus
formosos arecais, acordada pelo fragoso despenhar das cascatas, pelo rugir do
tigre e dos uivos do chacal, os seus habitantes conservam com ciúme os seus hábitos
tradicionais. Em rudes govoles, o gouly, pastoril e nómada,
como que embalado pelo mugir do seu rebanho, a sua única riqueza, sem ambições,
mas feliz à sombra do sumptuoso docel da árvore gralha.
Quase sempre em frente do pobre casebre, mesmo no centro do anganam,
mão religiosa cultiva o pimpol entre cujos ramos nasceu Vishnu.
O habitante do território das Novas Conquistas é um exímio conhecedor de
plantas úteis e medicinais. Muitas vezes desce ele às vilas como curandeiro ou garopeiro
e então vende mezinhas ou diverte as turbas. Não gasta o sabão importado da Europa,
porque conhece o uso das folhas de saboeira, condimenta o caril com as folhas
da árvore
do caril, conhece a célebre raiz de João Lopes como o melhor tónico;
anda quase sempre munido de um pedaço de pau-de-cobra, enfim, é um digno
precursor se não mestre de Garcia da Orta. Com efeito, a Natureza aí é
de prodigiosa exuberância, e o hindu nutre não sei que amor santo pelas
plantas. Ao lado das medicinais brotam aí a champaca, dedicada a Vishnu,
e cujas flores são muito apreciadas pelas gentias, como ornato de cabeça; o
jasmineiro, o mogarim, e a linda trepadeira clitorea ternatea. A prodigalidade
do reino vegetal corresponde à do reino animal. Ao romper da alva lindos
pássaros saúdam o astro benfazejo, espalhando pela ramaria a música alegre dos
seus trinos. Mal douram o horizonte os primeiros raios do sol, e o orvalho cai,
gota a gota, no solo alastrado de odoríferas flores, saltitam de ramo em ramo o
pássaro-do-sol, o bulbul sultana, o papagaio-de-cabeça-azul, o engole-vento, o gaivão-dos-palmares, o pássaro-alfaiate, o mainato-religioso e uma infinidade
de aves, qual delas a mais rica na plumagem e mais festeira no gorjeio
vibrátil, modulado, ligeiro como o acordar do dia oriental.
Debaixo de um céu rubro; o gouly descalço e a cabeça
descoberta, como um herói, pastoreia por vastas campinas o seu rebanho.
Fatigado pelo calor, deita-se sobre a fresca relva, e erguendo as pernas em
posição vertical brinca com os pés ao som da flauta pastoril. Vem descendo pela
encosta uma manada de búfalos. Sobre o dorso, de rosto para trás, sentam-se os
pastores com as pernas cruzadas, como ídolos levados em charolas; outros
deitam-se de barriga para o ar e soltam gritos estrídulos em sinal de recolher
aos seus companheiros. Nas aldeolas esperam-nos as goulinas, raparigas
fortes e esbeltas, com os seus grandes brincos pendentes da orelha e o colo cheio
de contas e missangas, como os seus ídolos. Enquanto os pastores tiram do langotim
e repartem entre si os carandams e churnams que colheram no
mato, a família prende o gado às estacadas e junta a bosta com que se asseia o
chão da casa e o canteiro do sagrado pimpol. Muitas vezes estes hebreus
indianos formados em tribo desarmam a choça, fazem em feixe os bambus, as
mulheres atam os filhinhos por detrás das costas, e lá vão carregando a casa
toda por esses íngremes trilhos escolher outro sítio mais cómodo. Mas não é só
o gouly,
pacífico e pensativo, vindo às vilas vender o lounim, que habita essas
regiões, sobre as quais a nossa influência tem sido nula. Novas Conquistas,
para os imaginosos, é um ninho de salteadores. De tempos a tempos, fortes
quadrilhas de salteadores têm trazido em constante sobressalto os povos de Goa. Os salteadores das Novas
Conquistas, porém, não são, como se se supõe, uns celerados por índole ou profissão.
A maior parte das vezes não é só a fome ou o espírito de aventura, que lhes
arma os braços. Há no fundo dessa vida semibárbara profundos dramas humanos». In
Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia,
Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.
Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!
Cortesia de Ésquilo/JDACT