domingo, 25 de maio de 2014

A Catedral Verde. João Aguiar. «… a miúda vai lá ter contigo pelas quatro e meia... ‘que diabo’, quem me ouvir há-de pensar que sou um proxeneta. Fazes o favor de não tentares pôr-te nela…»

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«(…) Objectei: não havia nenhum pretexto válido que justificasse uma entrevista neste momento; eu não podia vir a Lisboa nos próximos dias a redacção ficava-me longe e dificilmente arranjaria lugar para estacionar o carro; não tinha nada para dizer. Invoquei todas as desculpas possíveis e algumas inaceitáveis, pus à prova a sua amizade, a sua paciência e a sua teimosia.
Suspeito que, no fim, foi já só a teimosia que o levou a insistir e a vencer, ao retirar-me o último dos últimos argumentos, isto é, ao ceder-me o seu próprio apartamento para eu não ter de ir à Baixa. Depois disso, recusar seria uma ofensa deliberada. Não compreendo tanta insistência não ser pela teimosia, mas compreendo ainda menos a minha repugnância. Ou talvez, convém ser sincero já que ninguém está a ouvir-me, a compreenda demasiado bem. Em cada entrevista que dou, sinto crescer a minha inadequação aos tempos: os tempos querem respostas curtas, sintéticas, fulgurantes, mediáticas e, sobretudo, a preto e branco, porque nem o leitorzinho nem o redactorzinho entendem os meios tons. Ora, cada vez mais, sou incapaz de pensar e de falar nesses termos, que me parecem inexactos, para não dizer desonestos. O resultado é que falo de mais, prego uma seca ao entrevistador e vejo depois a minha resposta resumida, por imperativos de espaço e legibilidade, a tudo aquilo que não é essencial.
Neste caso particular, acrescia aquela especificação feita pelo João Carlos: vou destacar uma miúda porreira. Mas enfim, sobre isso não quero dizer nada, nem a mim próprio.
Seja como for, o João Carlos declarou: vais para minha casa, aí tens espaço para estacionar até um tanque de guerra, e instalas-te confortavelmente. A miúda vai lá ter contigo pelas quatro e meia... que diabo, quem me ouvir há-de pensar que sou um proxeneta. Fazes o favor de não tentares pôr-te nela.
A isto, não respondi. Eram palavras automáticas, um hábito machista puramente verbal, restos inexpressivos de uma formação que ambos ultrapassámos. Quero eu dizer que não corresponde a um comportamento ou sequer a uma mentalidade, que ele não considera as mulheres dessa maneira… ou pelo menos não é suficientemente bronco para pensar (afinal, sempre digo a mim próprio aquilo que não queria) que essa é uma maneira possível, sedução rápida de fêmea por macho, tendo o macho ultrapassado os cinquenta anos. O que é válido para ele e para mim, já que temos praticamente a mesma idade. Entretanto, é também verdade que a reserva que adoptei perante mim próprio serviu para esconder uma pequena dor íntima, indefinida (a dor da idade?). Essa é uma outra questão, Sobre a qual hei-de talvez reflectir mais tarde, com tempo livre à minha frente.
Por agora, limito-me a esperar a sua chegada. Ele disse-me que viria para casa logo que saísse da revista e depois jantaríamos juntos. Deve querer dizer-me o que a rapariga me revelou antecipadamente, que espera de mim uma colaboração regular». In João Aguiar, A Catedral Verde, (A Crónica de Santo Adriano), ASA Editores, Porto, 2006, ISBN 972-41-2412-6.

Cortesia de ASA/JDACT