sexta-feira, 30 de maio de 2014

Mitos de Ontem e de Hoje. Idade Média. O Oceano e a Ásia eram povoados de monstros? Paulo Sousa Pinto. «Se os bosques, as montanhas ou os rios próximos escondiam seres temíveis ou mágicos, como esperar que terras distantes e desconhecidas não albergassem maravilhas ainda mais estranhas?»

jdact

«(…) A estas criaturas semi-humanas acrescia um vasto rol de animais maravilhosos, como dragões, centauros, unicórnios, sátiros ou sereias, que se supunha viverem algures, em coordenadas mais ou menos imprecisas, no oceano ou em terras situadas além dos limites directamente conhecidos pelos Europeus. A Ásia longínqua, para lá do mundo muçulmano, suscitava especial interesse. Circulavam pela Europa várias compilações de maravilhas do Oriente, e uma em especial, a de John de Mandeville, conheceu grande difusão, tendo sido copiada, traduzida e, mais tarde, impressas. Este autor permanece um mistério. Aparentemente, trata-se de um relato de uma viagem realizada por um nobre inglês algures em meados do século XIV, mas essa personagem provavelmente nunca existiu e a viagem parece não passar de uma compilação de dados de viajantes reais misturada com histórias fabulosas.
Convém, contudo, relembrar que não era apenas o oceano desconhecido e a Ásia longínqua que se julgavam povoados de criaturas sobrenaturais. Bruxas, lobisomens, vampiros, anjos ou faunos preenchiam o imaginário e faziam parte do quotidiano dos Europeus, condicionando a forma como se relacionavam entre si e com o mundo em redor (tanto o natural como o sobrenatural). Se os bosques, as montanhas ou os rios próximos escondiam seres temíveis ou mágicos, como esperar que terras distantes e desconhecidas não albergassem maravilhas ainda mais estranhas? Como é natural, as descrições de monstros, seres maravilhosos e homens bizarros, assim como de fabulosas riquezas, que existiriam nas margens e para além do mundo conhecido, alimentavam a imaginação e excitavam tanto o temor como a curiosidade. Não eram, porém, um móbil suficientemente poderoso para iniciar um processo de descobrimento do mundo, como o que os Portugueses desencadearam na primeira metade do século XV, nem um travão inibidor capaz de impedir ou refrear a sua progressão e sucesso.

Antes dos Descobrimentos, pensava-se na Europa que a Terra era plana?
Tive uma professora no antigo ciclo preparatório que o afirmou uma velha sala de aula. Como não se tratava de uma docente de História ou Geografia, assumi que as suas palavras não passavam de um simples comentário, um mero eco de uma ideia muito comum. Uma Terra plana, quadrada e com abismos onde se pensava que se precipitariam os navios que se chegassem demasiado perto, ou um disco circular sob uma abóbada celeste, são ideias correntes, embora erradas, acerca do alegado pensamento dominante na Europa sobre a forma da Terra, até ao século XV. As viagens marítimas teriam sido, assim, um movimento de enorme ousadia e coragem, não só por contrariarem a tradição defendida por sábios e autoridades eclesiásticas, mas também por desafiarem um destino fatal que se tinha por certo. Estas noções erróneas, mas que permanecem enraizadas, ainda nos nossos dias, estão articuladas com o mito de uma Idade Média obscurantista, dominada por uma Igreja Católica ferozmente avessa ao espírito crítico e que defenderia, de forma dogmática, a ideia da Terra plana. A sua divulgação ficou a dever-se, em boa parte, ao físico americano John William Draper (1811-1882) e ao enorme sucesso e difusão da sua obra History of the Conflict between Religion and Science, de 1874.
É também fácil de constatar, em certa literatura de divulgação, sobretudo norte-americana, como Cristóvão Colombo era apresentado como um génio revolucionário decidido a provar que o mundo era redondo, contra o pensamento dominante, e obscurantista, da época. Aparentemente, foi o escritor americano Washington Irving (1783-1859) o criador e principal responsável pela difusão deste mito, na sua biografia do navegador (A History of the Life and Voyages of Christopher Columbus, 1828). No nosso tempo, existir quem defenda que a Terra é plana (como os membros da Flat Earth Society, fundada por Samuel Shenton em 1956 e actualmente com actividade residual) não passa de uma curiosidade bizarra, mas há séculos não o era seguramente. Contudo, esta ideia nunca prevaleceu e as tradições geográficas que a defendiam nunca conheceram expressão significativa». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.

Cortesia de E. dos Livros/JDACT