quinta-feira, 15 de maio de 2014

O Malhadinhas. Mina de Diamantes. Aquilino. «Que a minha língua era afiada como a faca que trazia à cinta, teimam por aí. Bem haja eu, que nunca deixei a minha honra por mãos alheias, nem me esqueci de pagar agravo ou fineza recebida»

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«(…) Acabava eu o responso, e não há pior zombaria que a verdade, o Bisagra que aparece no traço da porta. E, à abanar a cabeça. Cresceu para mim, mas sem arrogância, que eu ainda tinha a faca na unha para mostrar como se picava a mouçó da mulher. - Então ela diz-me tó-ruça!? Apostamos uma quarta de vinho em como te enganas. Queres? Não queres? Anda comigo e vais ver. Homem, um cântaro de vinho...? Ri eu, riram todos do desconchavo. Muito aceso, o Bisagra continuava â protestar e a pedir aposta, e eu perdi a paciência.
Desapareceu e estávamos nós deitando contas à pachouchada, quando se ouviu grande banzé: o Bisagra fora encontrar a mulher com o padre Antunes da Lousadela e zupava nos dois como em amassadoiro de linho. Foi preciso arrancar-lhe das mãos o coroado, senão, matava-o. Mesmo assim, ficou com uma sobrancelha deitada abaixo e mais pingão e lastimável que um dos palhaços que, por folgança de carnaval, se tinham esfandegado no largo naquela quinta-feira das comadres. Passo foi aquele que muito aproveitou a toda a gente: a Barrelas porque o castigo público morigera, à Claudina porque dali em diante foi mais cautelosa a admitir galantes em casa, e ao Bisagra porque devia ter, ao menos por algum tempo, entrado em posse do que era seu. E aí está, porque da minha má-língua veio benefício ao mundo e eu me julgo forro, no livro da glória, do pecado que mais houver de me carregar quando chegar às portas do Paraíso. É verdade!
Que a minha língua era afiada como a faca que trazia à cinta, teimam por aí. Bem haja eu, que nunca deixei a minha honra por mãos alheias, nem me esqueci de pagar agravo ou fineza recebida. A panela em soar, o homem em falar. A língua para amansar as mulheres e homens mulherengos que faziam pouco de mim ou se atravessavam no meu caminho, a faca para rebater os tratantes que me ameaçavam o fagote. Se, devido à minha má-língua, esteve o padre da Lousadela com os pés para a cova, já contei a Vossorias como foi. Se dormiu a mulher do Duarte em lençóis de vinho, eu lhes vou dizer como se deu tal comédia.
No dia de Reis, há tantos invernos, que só me lembra ter vindo, por essa altura, uma trovoada medonha que arrasou os campos e matou as aves, estávamos eu, o Meses regedor e o Albino alfaiate, sentadinhos ao soalheiro, no cabeçalho dum carro, a gozar o ripanço do dia santo e a dizer mal do bispo. Chegou-se a nós o Duarte, e vá de cigarro, vá de amenidades, disse-nos: - Ó rapazes, tenho lá um vinhinho, o pedaço dum palhetinho, que até fica a rezar nas goelas uma música celestial. Só queria que provásseis... - Se ele é isso, redarguiu o Albino, que também não era homem para se fazer rogado, a operação é boa de fazer. - Então vinde, vinde beber um pucarinho de Molelos, tornou todo franco, abrindo marcha. O Duarte morava para o Oiteiro na casa que chamam do Sargento--Mor, e é pela obra de silharia e os tectos em masseira uma das sete maravilhas da nossa terra…
Sete maravilhas, sim, senhores, e eu digo quais elas são. A primeira é a armadura do Bisagra; mais frondosa nem a cabeça do cervo-real. A segunda é o bandulho do Albino, que à semelhança de todos os odres tem a boca ancha e, ao contrário dos demais odres, não há vinho que o farte. A terceira são as chinelas do tio Rela em bezerra branca, que viram Lisboa no Centenário de Santo António, entraram no Ministério do Reino e voltaram a penates para figurarem no auto que aqui haja de se representar do Senhor Juiz de Barrelas. A quarta é o pego da Ponte das Tábuas, que não tem fundo. A quinta são as trutas desse pego que são maiores do que as galgas do padre Farrusquinho, que até de boca fechada mentia. A sexta é a nossa igreja com obra de talha como não há em Portugal, e a cruz de latão do tempo do Rei Vamba. A sétima é a casa de que lhes estou falando com esconderijos contra ladrões e miguelistas, enxovia, cisterna empedrada, que ainda viram estes olhos que a terra há-de comer e os senhores já não verão. E não verão, porque veio um selvagem e deitou tudo a terra para fazer um chiqueiro». In Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas, Mina de Diamantes, Assembleia da República, 2007, Bertrand Editora, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-25-1631-0.

Cortesia Bertrand/JDACT