sábado, 31 de maio de 2014

Romance e Teatro no 31. Aventuras d’O marquês de Mântua. Maria Idalina Rodrigues. «… adiantando sobre eles alguns esclarecimentos que os arrumem no corpus, de que sirvam de testemunho à sua dupla identidade, de expressão e de conteúdo. São, romances protagonizados...»

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Teatro de Portugal e de Espanha
Num tempo de saudável rotação e de descrédito de velhos travões no andamento dos estudos literários, em que, com o assentimento dos críticos e a atenção interessada de muitos investigadores, justamente crescem e se celebram, entre nós, os trabalhos sobre Literatura oral e tradicional e, em especial, sobre o Romanceiro ibérico, não deixa talvez de ser prudente avisar à partida o descuidado leitor deste escrito daquilo que nele por certo não encontrará. Ou seja, preveni-lo honestamente de que o envolvimento com os velhos relatos lírico-dramáticos não avaliza, neste caso, um entendido na sedutora rede de definições, normas de estrutura ou de discurso, rotas antigas e actuais do romance peninsular; recomenda apenas, e muito mais modestamente, outro leitor, agradado do teatro peninsular dos séculos XVI e XVII, com certa prática e muito comprazimento no ajustar dos textos espanhóis e portugueses, não raro com antepassados comuns, que recuam, por sinal, até ao Romanceiro luso-espanhol. Aliás, a travessia pelos romances dos dramaturgos ibéricos, particularmente dos da vizinha Espanha, foi tão larga que valeria bem a pena levar mais longe o que já está feito no sentido de separar trigo e joio nessa vasta seara das letras. Temos, de resto, pioneiros que clamam por continuadores: Carolina Michaëlis, por exemplo, avançou oportunamente um rol bastante significativo de embrechamentos e aproximações.
Na esperança de estudo alheio de maior fôlego, vão entretanto os afeiçoados, a esta temática dos cruzamentos e contaminações entre romance e teatro, diversificando as achegas em áreas parciais, em busca da possível concertação final. Foi a dentro destes parâmetros que me aventurei a acudir de perto, e a título mais apelativo que metodologicamente rigoroso, às andanças de certos heróis de uma história antiga, aquela que, nascida e alimentada na fértil floresta de intrigas da corte carolíngia, conta a morte de Valdovinos por Carloto, filho de Carlos Magno, e a vingança reclamada pelo marquês de Mântua, seu tio, e prontamente satisfeita pelo próprio Imperador. A recapitulação das destemidas proezas, onde a lembrança e a invenção se confundem, ficará condicionada aos ensinamentos, aliás, nem sempre coincidentes, de umas quantas obras literárias vindas a público entre os séculos XV e XVII: 1.° um grupo de romances jogralescos que facilmente podem caracterizar-se como adaptações peninsulares de troços da gesta francesa; 2.° o auto do dramaturgo quinhentista português Baltasar Dias, intitulado Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno; 3.° a Tragicomedia Famosa de El marqués de Mantua, da autoria do universalmente reputado poeta dramático espanhol Lope de Vega Carpio.
Sobre estes textos se encadearão, a par de algumas informações desgarradas, que rapidamente lhes esbocem o perfil, os resultados de uma leitura prioritariamente destinada a avaliar em que medida se conciliam ou separam, ao reaverem um comum quinhão de figuras e sucessos. A tragicomédia de Lope de Vega, porém, de feitura dramática mais habilidosa e amadurecida e de meditado alcance ideológico, será motivo para um levantamento um tanto mais ambicioso de intenções e procedimentos estéticos.

Os romances carolíngios
Comecemos então pelos romances, adiantando sobre eles alguns esclarecimentos que os arrumem no corpus, de que são parte, e sirvam de testemunho à sua dupla identidade, de expressão e de conteúdo. São, dissemo-lo atrás, romances protagonizados pelo marquês de Mântua, por Valdovinos e por Carloto. No primeiro volume do Romancero General, Agustín Durán reúne sete sobre ligações e brigas entre tão afamadas personagens, mas são os três primeiros que nos importa pesquisar, porquanto foi sem dúvida neles que aprenderam o melhor da lição Baltasar Dias e Lope de Vega, apesar de não faltarem razões para se admitir que os restantes não eram desconhecidos de nenhum dos dramaturgos. Lope de Vega sobretudo deve ter tido também em mente o romance 358, o do anúncio da conversão da infanta moura Sevilha, por amor do cristão Valdovinos; dos outros, que interpretam os gestos desesperados da morica, ao saber da morte do amado, entoam o seu pranto ou enfatizam o seu apelo ao rei, talvez que a memória lhe tenha guardado alguns pormenores mais impressivos, mas é difícil precisar até que ponto os relembrou, nas tarefas da dramatização.
Segundo Durán, que ainda não foi desmentido, trata-se de uma sequência de romances anónimos, subnúcleo de uma unidade mais vasta de quarenta e nove composições que se aparentam pela incidência na chamada matéria carolíngia; são, por outras palavras, um produto da espanholização de temas, acidentes e figuras da velha épica francesa. Ainda que não muito numerosos na Península, onde o circunstancialismo histórico fora sempre distinto do francês, os romances à moda carolíngia aparecem com mais frequência que os de feição bretã. Contam-se, entre os primeiros, as narrativas das façanhas de Roncesvales ou das lides de Gaifeiros; os mais populares, porém, são talvez os do conde Claros: no entanto, muitos outros pares de França, como Roldão, Reinaldos, Oliveiros, e o próprio Imperador Carlos Magno foram popularizados pela Literatura oral e tradicional ibérica. Ajustados a um padrão sociocultural dos séculos VIII e IX, estes pequenos monumentos poéticos absorvem, no entanto, lendas que apenas começaram a expandir-se no século XII; é talvez esta descontinuidade que explica a sua débil consistência histórica: os anacronismos desfilam, os protagonistas revezam-se nas proezas; as suas fisionomias decompõem-se e recompõem-se em modelos heróicos diferentes». In Maria Idalina R. Rodrigues, Estudos Ibéricos da Cultura à Literatura, Pontos de Encontro, Séculos XIII a XVII, Diálogo-Série Fronteiras Abertas, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1987.

Cortesia do ICLP/JDACT