O Princípio
«(…) Após uma breve pausa para retomar o fôlego, o judeu afinou as
cordas vocais para concluir o que no seu entender correspondia à salvação do
infante: - Ordenar-vos-ia se a minha autoridade chegasse a tanto. Como não
chega, rogo-vos, rastejo a vossos pés para que adieis o acto que estais prestes
a concretizar. O meu amo, ponderai. É que não vos custa nada adiar por umas
horas a cerimónia, para serdes feliz. Sem pronunciar palavra, o príncipe,
via-se bem, tinha chegado ao último dos limites que concedera a Abraão Guedelha
e a si próprio. Num gesto compreensível, mandou levar o inconsolável cientista,
passando das mãos nobres dos infantes para as mãos rudes dos guardas reais e
dali para longe do rei. Debilitado, Guedelha, mesmo assim, quis mostrar que a
força cansada do corpo não se reflectia na voz. Encheu os pulmões de todo o ar
que pôde e num brado disse as palavras malditas: - Não me dais ouvidos? Não
quereis ser feliz? Rejeitais
as poderosas razões dos astros? Então, o teu reinado será de grandes
tormentos.
O silêncio que se seguiu às palavras do mestre significou mais um
pesadelo do que um momento de reflexão, pois uma maldição acabava de cair sobre
aquele que iria governar Portugal. Ninguém naquela reunião entendia de
astrologia, a não ser o mestre, mas todos ficaram silenciosos, ainda mais
porque em forma de premonição acabavam de escutar um mau agoiro. Agitado,
levado aos encontrões, ao mestre de nada lhe valeu estrebuchar. Convinha até
que o não fizesse, porque os limites da sua segurança física estavam azero, e
dali em diante, tudo quanto dissesse voltar-se-ia contra si, expondo a sua
integridade claramente ameaçada. Não desconhecia que se tinha excedido, receava
até pelo que lhe viesse a acontecer, muito embora confiasse na bondade do rei e
no momento de grande elevação que se vivia na corte. Martirizava-se, no
entanto, quando pensava naquele homem sem tempo, por quem era capaz de tudo,
até de morrer. A cerimónia seria antes do meio-dia, pensou Guedelha, que fosse.
Servia-lhe tão bem como até ali, mas, infelizmente, adivinhava o Mestre, mais vezes,
em condições bem mais difíceis e por menos tempo.
Livre dos comentários do físico, o rei Duarte abandonou o local da
controvérsia, num passo levitado, deixando que o seu corpo cumprisse o que a
mente lhe pedia. Saboreando cada contracção dos músculos, sentou-se no cadeirão
real para dar início às cerimónias. Ali perto, do outro lado das muralhas,
ouviam-se as vozes dos populares. Não tinham os problemas transcendentais dos
senhores do castelo, estavam limpos tanto quanto podiam, vestiam-se do que
tinham de melhor, não renegavam a sua condição de servidores de todos os
serviços. Homens e mulheres, jovens ou velhos, gritavam estridentes vivas ao
infante, entremeadas de excessos verbais que lhes ficava bem e os divertia. Os
homens, sempre em maioria, entontecidos pela excitação da maralha e pelo vinho
que corria nas gargantas, de borla, pela graça de sua senhoria o príncipe Duarte,
empunhavam nas mãos engrossadas por trabalhos agressivos as suas alfaias,
reconhecimento provado de uma identidade social e profissional. Cavadores ou abegões,
regateiras ou vendedeiras, estavam todos convictos de que a sua presença era
indispensável naquele momento de exaltação.
Os moços, menos atentos aos actos institucionais, fossem eles mancebos
da lavoura, das ovelhas ou aprendizes das mais diversas profissões,
perseguiam-se entre a multidão em correrias e esquivas nem sempre conseguidas. Entretanto,
dentro do castelo, tudo se preparava para confirmar a sucessão do filho varão
de João I e de D. Filipa de Lencastre. Depois de um silêncio reclamado, as
trombetas e charamelas dos músicos dentro do Paço Real, juntamente com os sinos
da Sé, ali mesmo em baixo, começaram a troar os seus fortes sons, sinais
indistintos do momento inesquecível em que o rei seria aclamado». In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
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