quinta-feira, 29 de maio de 2014

Povos e Culturas Reflexos do Maio de 68 na Sociedade Portuguesa Artur Matos e Mário Lages. «Uma concepção utópica? Foi a grande, [a] real, a força de transcendência, a ideia nova, na primeira rebelião poderosa contra o conjunto da sociedade existente, a rebelião pela total transvalorização…»

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Reflexos do Maiode’68 na Sociedade Portuguesa
Para uma revisitação de one-dimensional man’ de Herbert Marcuse
Consciência e utopia
«(…) Com efeito, segundo Marcuse, o fenómeno da própria revolta estudantil vem trazer renovada confirmação empírica à sua tese de que o conceito de uma classe revolucionária predeterminada corresponde, no fundo, a uma constelação revoluta e obsoleta das lutas sociais (própria do século XIX e dos começos do século XX), que não está mais em linha com as alterações entretanto surgidas no funcionamento efectivo dos sistemas materiais e do tecido social. Pelo contrário, de acordo com a análise que faz do capitalismo avançado e dos seus poderosos mecanismos de integração e de homogeneização, é apenas do seio de uma acção determinada de rejeição em bloco do estabelecido (e da bateria de princípios que o norteia) que os próprios portadores da mudança, detentores de um certo estatuto de exterioridade relativamente ao sistema instalado, se perfilam e assumem como tal, na e pela sua prática. Como ele próprio refere mais adiante neste mesmo ensaio de 1969: A procura de agentes históricos específicos de mudança [change] revolucionária nos países capitalistas avançados é, de facto, sem sentido [meaningless]. As forças revolucionárias emergem no próprio processo de mudança; a tradução do potencial no actual [ou efectivo, actual] é obra de prática política. Por outro lado, o ingresso (ingression) da imaginação e da criatividade, de uma radical liberdade transgressora e sensualizada, em processos que declaradamente apontam à transformação configura um ambiente de alternativa que se acompanha de rasgos de surrealidade e de utopismo, particularmente, se se tomar como termo de referência o princípio de realidade que comanda a subsistência do existente e o próprio modelo tradicional que aos revolucionamentos costuma ser associado.
Daí a perplexidade, e, do mesmo passo, o apreço, que não deixa de acompanhar uma reflexão sobre os desenvolvimentos mais recentes: Uma concepção utópica? Foi a grande, [a] real, a força de transcendência[transcending force], a ideia nova [idée neuve], na primeira rebelião poderosa contra o conjunto [the whole] da sociedade existente, a rebelião pela total transvalorização [ou transvalidação] de valores [transvaluation of values], por maneiras de viver [ways of life] qualitativamente diferentes: a rebelião de Maio em França. No entanto, o ajuizamento de Marcuse procura escavar mais fundo, e envolve toda uma reapreciação, e um reenquadramento, do próprio conceito de utopia, que privilegie uma sua abordagem dinâmica relativamente às meras contraposições num registo de imediatez paralisada. O viso de que estas manifestações de revolta se revestem apresenta inegáveis traços utópicos, que não devem em caso algum ser liminarmente desatendidos. Simplesmente, importa questionar se esta contaminação de processos que visam uma remodelação social do viver que não dispensa (antes requer) um vector de criatividade artística, uma dimensão estética, não corresponderá afinal àquela vitalidade a reencontrar e a inventar, a nova sensibilidade que expressa o ascendente [ascent] dos instintos de vida sobre [a] agressividade e [a] culpa, sem a qual a instauração de algo de realmente novo não pode ter lugar.
É preciso, portanto, perguntar se a forma de uma imaginação criadora e gratificante, em acto na transcendência dos padrões e das metas da sociedade instalada, não se encontra ela própria inscrita já, como exigência (uma refiguração do Sollen) e como negação, no leque de possíveis que essa sociedade imediatamente reprime, mas, do mesmo passo, comporta (e cuja contenção opera). O teor constitutivo de tudo aquilo que de pronto aparece, a um olhar afeiçoado pelo, e afeito ao, dominante, como utopia, e o seu potencial efectivo de transformação, dependem, em larga medida, da sua inscrição real nesse horizonte de possibilidades: A noção de forma estética como a Forma de uma sociedade livre significaria, de facto, inverter [reversing] o desenvolvimento do socialismo de científico a utópico, a menos que possamos apontar para certas tendências na infraestrutura da sociedade industrial avançada que podem dar a esta noção um conteúdo realista [a realistic contente]. Isto é, no fundo, o que está em causa, na perspectiva de Marcuse, é o apuramento de uma teoria crítica da sociedade industrial avançada que a considere na sua própria estrutura, na literalidade dos seus factos mas também na historicidade dos seus factores, sem perder de vista a possibilidade de uma sua transcendência, que a falaciosa concreção do empirismo posi­tivista, implantado nas consciências e enformante dos comportamentos generalizados, bloqueia, deturpa e priva dos vectores que além dela são susceptíveis de conduzir, nos termos de padrões mais exigentes, enriquecidos e possíveis, de humanidade». In José Barata Moura, Artur Matos e Mário Lages, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Povos e Culturas n.º 12, Reflexos do Maio de ’68 na Sociedade Portuguesa (CEPCEP), Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2008, ISSN 0873-5921.

Cortesia de CEPCEP/JDACT