«Para a imensidade dos literatos pessoanos o mais difícil e intrigante
problema continua a ser o dos heterónimos. E isto apenas acontece pela
ignorância de um dado fundamental: por o considerarem um fenómeno puramente
literário, quando ele é essencialmente de natureza médica. E o que se tem
escrito e imaginado sobre isto, do mais fantasioso ao mais absurdo! Todavia o
diagnóstico esclarecedor está feito: Fernando Pessoa sofria de esquizofrenia,
e nesta realidade está a causa da heteronímia. Quem porventura não conheceu
algum desses infelizes tomados por almas
penadas que (e mais frequentemente nos estratos sociais inferiores),
levam a vida entre bruxas e exorcistas? São casos vulgares
na clínica, atormentadores de pessoas e de famílias em que os doentes se
queixam de albergarem espíritos alheios que rivalizam com o seu próprio
espírito, levando-os a atitudes estranhas e versáteis, desfigurantes de suposta
personalidade. Estes casos também sucedem na literatura quando o atingido tem
vocação de escritor e não se prende em ocultar a circunstância. Um
acontecimento notório desta espécie deu-se, precisamente, com Fernando Pessoa que foi, de entre todos
os revelados, não só no panorama português como no europeu, o que mais se
evidenciou, mercê da franca sinceridade das suas confissões e da legião
entusiasta dos seus panegiristas.
A cisão em dois pertence à fase sintomática inicial da esquizofrenia.
Pessoa começa por acusar essas queixas, que levam à aparência de dupla personalidade;
mas na realidade patológica o significado é o de duas partes desintegradas do
todo, desfrutando de uma certa autonomia e predominância, e que se alternam na
condição mental cada um de nós é dois. E no Livro do Desassossego, lê-se: Ninguém
supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me
sempre idêntico a mim. E adiante repete: Sou dois, e ambos têm a distância, irmãos siameses que não estão
pegados. Num devaneio relata-nos, a seu modo vago, mas expressivo, a
percepção desse anómalo estado de duplicidade psíquica: Caminhávamos, juntos e separados, entre os desvios bruscos da
floresta. Nossos passos, que era o alheio de nós, iam unidos, porque uníssonos…
Mas iam também disjuntos porque éramos dois pensamentos, nem havia entre nós de
comum senão que o que não éramos pisava uníssono o mesmo solo ouvido. […] Nenhum
de nós queria saber do outro, porém nenhum de nós sem ele prosseguiria. [...]
Quem éramos? Seríamos dois ou duas formas de um?
Esta interrogação é o sinal de passagem da inicial duplicidade à mais
perturbante multiplicidade mental. Cada
um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmo; Tenho mais almas que uma / Há mais eus do
que eu mesmo. Vivem em nós
inúmeros (Odes de Ricardo Reis). E daqui em diante com o fraccionamento
cerebral a acentuar-se, tudo se vai complicar num desassossego e numa
desorientação crescentes que o poeta estampa nos seus versos pungentes:
E como são estilhaços
do ser, as coisas dispersas
quebro a alma em pedaços
e em pessoas diversas.
In Poesia II
Repare-se desde já na expressão que quer dizer a alma dividida em pessoas diversas. O que é esta, senão a
demonstração da origem patológica dos
heterónimos? Porém, não nos fiquemos de momento na interpretação.
Voltemos ao Livro do Desassossego I que,
repito, deverá ler-se em voz alta, como uma história clínica, o que na
verdade é, e por isso o interesse, ou curiosidade, que desperta a sua leitura.
A patografia deste género foi sempre atraente. E então ouviremos o autor
gritar, aflitivamente: Meu Deus, meu
Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há
entre mim e mim? E tudo se me
confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.
Tudo se me evapora. A minha
vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha
personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti
outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro
cenário. E aquilo a que assisto sou eu». In Mário Saraiva, A Heteronímia
de Pessoa, Brotéria Cultura e Informação, volume 138, 1994.
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