«Acontece na história do Oriente e ainda de certos povos europeus,
trazidos à última hora para o plano internacional, descobrirem-se-como novas
estrelas no remoto céu, heróis, poetas, trampolineiros de génio, que soçobraram
no silêncio, embora persista de suas pegadas relevante traço. Por vezes, mesmo,
essas pegadas ressaltam tão vivas como se fora na véspera que houvessem feito
por ali caminho. Outras vezes, mal se distinguem semi-extintas, ou apenas
perceptíveis à lupa. Afirmando-nos bem, rasto acusando agilidade , rapidez, e
ao mesmo tempo certo rodeio, a curva delirante dos proselitistas e dos devaneadores,
de quem pode ser senão de peninsulares?
Difuso, à laia de tarso rebatido, falanges longas no pé espalmado, trate-se
de bandeirantes, soldados, belfurinheiros, apóstolos, chatins e até piratas,
deve ser deles. De tempo a tempos uns olhos mais espertos de investigador ou de
erudito descobrem estes vestígios curiosos. Quem foi este? E aquele? Assim a
sombra de Didacus Pyrrhus Lusitanus, que Barbosa Machado catalogou
sumariamente na Bibliotheca, como um entomologista podia fazer na sua prancha
às asas fúlgidas, nada mais que às asas, desarticuladas, dum esplêndido lepidóptero.
Frei Fortunato de S. Boaventura foi o primeiro a averiguar que
espécie de bicho perseverava sob a redoma deste nome grecizado. Em verdade
chamava-se Diogo Pires, natural de Évora, donde saiu com os 18 anos, filho
de pais que seguiam a lei de Moisés. Em 1535
estudava medicina em Salamanca. A capital da Meseta era ao tempo um dos
centros universitários de mais nomeada na Europa. Se dava a primazia aos
estudos de teologia e de direito, já ali começavam a exercer-se com critério
realista as ciências naturais. Assim era possível que Amatus Lusitanus praticasse,
no âmbito experimental da sua cátedra, a dissecação anatómica de cadáveres
humanos, o que constituía uma audácia em semelhantes disciplinas.
Por essa altura ou proximidades professavam em Salamanca muitos e notáveis
portugueses. Aires Barbosa, que os espanhóis chamam Arias Barbosa, ensinava
línguas e retórica; Álvares da Veiga, gramática; Rodrigo de Castro, filosofia e
medicina; Manuel da Costa regia a cátedra de Prima do Direito Civil; Gomes de
Figueiredo, autor da Milicia christiana, preleccionava
filosofia; […] Manuel Mendes de Castro, direito civil, etc., etc. Sem falar em Amatus
Lusitanus, aliás João Rodrigues, natural de Castelo
Branco, do mesmo sangue judeu que Diogo Pires, consanguineus, donde
equivocadamente frei Fortunato os dar como aparentados, repartiam-se muitos deles
entre Coimbra e Salamanca. Por um largo transcurso do século XVII esta
Universidade foi mesmo preferida pelos estudantes portugueses a qualquer outra,
em particular pelos ordenados da Companhia de Jesus. Quando o Colégio da Lapa lhes
pertenceu, grande número de noviços ali foram defender tese.
Além dos nomes acima citados, outros luminares, oriundos de Portugal,
figuram no corpo docente das faculdades salmantinas neste lapso de três ou
quatro gerações, tais como frei António Ludovico, autor duma Institutionum
Hebraicorum, Tomás da Veiga, comentador arguto de Galeno, Luís de
Lemos, catedrático de filosofia. O velho burgo espraiado na campina rasa de
marga e sílica, à beira dum riacho sem água nem salgueiros, o Tormes,
com as fabulosas Cuevas para a nigromancia e ciências ocultas, descerrava uma
fisionomia particularmente escolástica. O censo acusava, ano por ano, para
cima, que nunca pata baixo, dos seus 5000 escolares. A indústria da terra
naturalmente era o estudante». In Aquilino Ribeiro, Portugueses das Sete
Partidas, Viajantes, Aventureiros, Troca-tintas, 1950, Livraria Bertrand,
Lisboa, 1969.
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