terça-feira, 13 de maio de 2014

Pyrrhus Lusitanus. Judeu Errante. Pinga Amor. Aquilino. «Sem falar em ‘Amatus Lusitanus’, aliás ‘João Rodrigues’, natural de Castelo Branco, do mesmo sangue judeu que Diogo Pires, ‘consanguineus’, donde equivocadamente frei Fortunato os dar como aparentados»

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«Acontece na história do Oriente e ainda de certos povos europeus, trazidos à última hora para o plano internacional, descobrirem-se-como novas estrelas no remoto céu, heróis, poetas, trampolineiros de génio, que soçobraram no silêncio, embora persista de suas pegadas relevante traço. Por vezes, mesmo, essas pegadas ressaltam tão vivas como se fora na véspera que houvessem feito por ali caminho. Outras vezes, mal se distinguem semi-extintas, ou apenas perceptíveis à lupa. Afirmando-nos bem, rasto acusando agilidade , rapidez, e ao mesmo tempo certo rodeio, a curva delirante dos proselitistas e dos devaneadores, de quem pode ser senão de peninsulares?
Difuso, à laia de tarso rebatido, falanges longas no pé espalmado, trate-se de bandeirantes, soldados, belfurinheiros, apóstolos, chatins e até piratas, deve ser deles. De tempo a tempos uns olhos mais espertos de investigador ou de erudito descobrem estes vestígios curiosos. Quem foi este? E aquele? Assim a sombra de Didacus Pyrrhus Lusitanus, que Barbosa Machado catalogou sumariamente na Bibliotheca, como um entomologista podia fazer na sua prancha às asas fúlgidas, nada mais que às asas, desarticuladas, dum esplêndido lepidóptero.
Frei Fortunato de S. Boaventura foi o primeiro a averiguar que espécie de bicho perseverava sob a redoma deste nome grecizado. Em verdade chamava-se Diogo Pires, natural de Évora, donde saiu com os 18 anos, filho de pais que seguiam a lei de Moisés. Em 1535 estudava medicina em Salamanca. A capital da Meseta era ao tempo um dos centros universitários de mais nomeada na Europa. Se dava a primazia aos estudos de teologia e de direito, já ali começavam a exercer-se com critério realista as ciências naturais. Assim era possível que Amatus Lusitanus praticasse, no âmbito experimental da sua cátedra, a dissecação anatómica de cadáveres humanos, o que constituía uma audácia em semelhantes disciplinas.
Por essa altura ou proximidades professavam em Salamanca muitos e notáveis portugueses. Aires Barbosa, que os espanhóis chamam Arias Barbosa, ensinava línguas e retórica; Álvares da Veiga, gramática; Rodrigo de Castro, filosofia e medicina; Manuel da Costa regia a cátedra de Prima do Direito Civil; Gomes de Figueiredo, autor da Milicia christiana, preleccionava filosofia; […] Manuel Mendes de Castro, direito civil, etc., etc. Sem falar em Amatus Lusitanus, aliás João Rodrigues, natural de Castelo Branco, do mesmo sangue judeu que Diogo Pires, consanguineus, donde equivocadamente frei Fortunato os dar como aparentados, repartiam-se muitos deles entre Coimbra e Salamanca. Por um largo transcurso do século XVII esta Universidade foi mesmo preferida pelos estudantes portugueses a qualquer outra, em particular pelos ordenados da Companhia de Jesus. Quando o Colégio da Lapa lhes pertenceu, grande número de noviços ali foram defender tese.
Além dos nomes acima citados, outros luminares, oriundos de Portugal, figuram no corpo docente das faculdades salmantinas neste lapso de três ou quatro gerações, tais como frei António Ludovico, autor duma Institutionum Hebraicorum, Tomás da Veiga, comentador arguto de Galeno, Luís de Lemos, catedrático de filosofia. O velho burgo espraiado na campina rasa de marga e sílica, à beira dum riacho sem água nem salgueiros, o Tormes, com as fabulosas Cuevas para a nigromancia e ciências ocultas, descerrava uma fisionomia particularmente escolástica. O censo acusava, ano por ano, para cima, que nunca pata baixo, dos seus 5000 escolares. A indústria da terra naturalmente era o estudante». In Aquilino Ribeiro, Portugueses das Sete Partidas, Viajantes, Aventureiros, Troca-tintas, 1950, Livraria Bertrand, Lisboa, 1969.

Cortesia da LBertrand/JDACT