terça-feira, 6 de maio de 2014

De como Identifiquei o Tratado de Confissom. Chaves 8. VIII. 1489. José Pina Martins. «… trata-se de um fresco colorido da sociedade portuguesa do século XV. Nesse fresco encontramos desenhado o gráfico existencial do homem português antigo, nas suas grandezas e nas suas misérias»

Cortesia de wikipedia

«(…) Fui informado de que, durante a refeição, quase só se havia falado do Tratado de Confissom. Com a concordância de Lopes Almeida, Marcelo Caetano exprimia-se mais ou menos assim: Sem querer desfazer do valor do rapaz, estou convencido de que ele não tem razão. A data do colofão não é o termo na composição e impressão do livro, mas da redacção do manuscrito. O livro acabou-se na vila de Chaves, o que quer dizer, o manuscrito foi concluído na vila de Chaves, na data indicada. Informado telefonicamente desta objecção, preparei novo artigo, não só reduzindo à sua insignificância estes reparos, que não tinham fundamento, mas trazendo novos elementos que, entretanto, eu tinha alcançado de um confronto muito pormenorizado com incunábulos espanhóis de Zamora e Salamanca um pouco anteriores a 1489. O meu artigo começava por indicar que, de facto, se destinava a pessoas cultas (e M. C. era cultíssimo), mas não especialistas de bibliografia. Este segundo artigo foi publicado em fundo do Diário de Notícias a 20 de Junho de 1965. M. C., em carta escrita no final desse mês, confessou-se vencido e convencido, havendo reconhecido a importância da descoberta para a incunabulística nacional.
Em Dezembro de 1974 (exactamente no dia 19), perante um juiz formado por Eugénio Asensio, Robert Ricard, Paul Teyssier, Raymond Cantel, André Saint-Lu e Marcel Bataillon, que presidia, defendi as minhas teses de doutoramento de Estado na sala Louis Liard da Sorbonne. Uma das teses era exactamente a edição diplomática do Tratado de Confissom e principalmente o meu estudo sobre os problemas do Livro português no século XV. Robert Ricard, não tendo compreendido inteiramente a ironia da minha interpretação de alguns aspectos mais pitorescos e picantes daquele texto, procurou com muita seriedade convencer-me da importância do sacramento da confissão na sociedade portuguesa do século XV, sem se aperceber de que estava a arrombar... uma porta aberta. Mas fê-lo com uma impecável delicadeza e com uma erudição excepcional. Marcel Bataillon discutiu comigo problemas erasmianos e erasmistas, domínio em que era o mais consumado investigador da época contemporânea. Mas Eugénio Asensio ocupou-se exclusivamente do Tratado de Confissom, lendo, um estudo que veio mais tarde a ser publicado, com o título de Une découverte bibliographique, nos Arquivos do Centro Cultural Português de 1977. Recentemente, em 1986, uma distinta bibliógrafa, Rosemarie Erika Horch, sustentou que o Sacramental, de que o único exemplar conhecido, numa edição quatrocentista, existe na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi publicado em 1488, também em Chaves, fundando-se, para tal afirmar, num testemunho indirecto.
Na verdade não repugna aceitar que a data do Sacramental seja anterior à do Tratado de Confissom. Infelizmente, porém, o exemplar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro é mutilado, faltando-lhe exactamente o fólio em que devia aparecer o colofão. Estou, contudo, convencido de que a tipografia de língua portuguesa deve ter aparecido em Portugal na década de 1480, embora não possa apoiar, com documentos indispensáveis, esta minha convicção. A qual, por isso mesmo, não pode ser apresentada em termos científicos, exactamente como a hipótese da distinta bibliógrafa Rosemarie Erika Horch. Levar-me-ia muito longe esta breve dissertação se, agora, me dispusesse a pôr em evidência aspectos fundamentais do texto. De facto, trata-se de um fresco colorido da sociedade portuguesa do século XV. Nesse fresco encontramos desenhado o gráfico existencial do homem português antigo, nas suas grandezas e nas suas misérias. Talvez que a parte mais original do Tratado de Confissom seja aquela em que o autor anónimo, que Eugénio Asensio pensa ser um franciscano observante, faz a exaltação do homem, na esteira do De hominis dignitate de Giovanni Pico della Mirandola, e critica pesadamente a corrupção eclesiástica, citando S. Francisco e exaltando o espírito de pobreza. Seria, porém, exorbitar do tema, pois, nesta nota, propus-me apenas recordar algumas ocorrências do debate que se travou em 1965, quando tive a sorte de identificar ou descobrir, como autêntico, um novo incunábulo que, na expressão de Eugénio Asensio, supposait une petite révolution dans I’histoire de Ia culture portugaise et une grande révolution dans celle de Ia typographie». In Lisboa, 13 de Dezembro de 1988.

In José Pina Martins, De como Identifiquei o Tratado de Confissom, Chaves 8. VIII, 1489, Revista ICALP, vol. 15, 1989.

Cortesia de ICALP/JDACT