Ramalho Ortigão ou o Republicanismo pequeno-burguês
«(…) São exemplos desse
aspecto, entre muitos, as passagens sobre A
alimentação e seus efeitos nas ideias, nos sentidos e nos aspectos da sociedade
(As Farpas de
Fevereiro de 1876) em que Ramalho confunde a pouca eficácia da
estatística no que diz respeito à alimentação nacional com a necessidade (extra-nacional
e extra-temporal) da metafísica: Porque
é que a Estatística nos não disse há mais tempo o que sabia? Ter-nos-ia
tirado o trabalho de procurar para tantos fenómenos as suas causas metafísicas.
Uma última fase da obra
de Ramalho Ortigão foi a das divagações folclóricas, em que Ramalho
evoca sobretudo a vida provincial, com saudosismo (provinciano,
contrariamente ao de António Nobre) mas também, por vezes, com um sentido
muito pessoal da festa e da magia da luz e das sombras, no Porto: Tamanho era o dia como a romaria. De sorte
que só à noite fechada se voltava para casa. E os que tinham ficado na cidade,
depois de terem ido ao Senhor Exposto, a Santo António das Taipas ou a S. João
Novo, viam do paredão das Fontaínhas deslizar em baixo, no espelho negro do rio
angustiado e túmido, as lentas barcas iluminadas de lanternas.
Ou em Lisboa (passagem
que nos faz pensar em Cesário Verde): Saio
de Lisboa de manhã cedo... Uma destas belas manhãs criadoras, em que as
abóboras e os melões abeberados na raiz pela rega da véspera se dilatam regaladamente
a um sol de rachar. Aliás, Ramalho deu-nos o melhor de si mesmo na evocação
de viagens, como se prova pelo seu livro A
Holanda (1883), em que nostalgicamente (e
neste sentido o livro não é só um livro de viagens, ele é bem característico de
toda a Geração de 70) evoca uma burguesia
cosmopolita (não pequena e não republicana), verdadeiramente civilizada, que,
para nossa grande desgraça, nunca chegou a existir em Portugal: Na posse plena do seu destino, toda a
Holanda pacificada respira largamente a glória, a felicidade, a alegria. Esse
pequeno e humilde povo fleumático, trabalhador, económico, inventivo, modesto, provocado
pelas mais arrogantes e poderosas nações do mundo, batera e derrotara toda a
Espanha, a Inglaterra e a França. A guerra, que arruinara os inimigos,
enriquecera a Holanda pelo comércio do mundo. Enquanto combatia no mar,
edificava em terra. Levantara diques, abrira canais, dissecara pântanos,
saneara cidades, construíra pontes, armara estaleiros, fundara escolas,
igrejas, palácios municipais, recolhimentos de velhos e de inválidos, hospícios
de órfãos, sedes de assembleias comerciais, de sociedades literárias e
científicas, de associações de operários, de irmandades de artistas, de
companhias de arcabuzeiros. Tinham-se reacendido os seus lares, agora mais
recolhidos e mais meigos; tinham-se enchido de flores os seus jardins;
tinham-se coberto de vacas e de ovelhas os seus prados. De resto, se a
partir de 1880 fez parte do grupo dos Vencidos da Vida e se nas Últimas Farpas renega o republicanismo
e manifesta a sua nostalgia de uma monarquia castiça, à antiga,
Ramalho Ortigão, com todas as suas limitações, fica na história da cultura portuguesa
como um representante daquilo que, na Geração
de 70, foi por vezes mais testemunho de uma época do que profunda análise e
verdadeira transformação dela.
Antero de Quental ou o mestre metafísico
A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta.
Esta frase de Fernando Pessoa define exemplarmente, ao mesmo tempo, a
vida e a obra de Antero de Quental, tão admirado por Pessoa.
Mas o grande drama do poeta é que, se para ele a vida não bastava, a literatura
ainda menos. Daí a impossibilidade para Antero de a literatura ser apenas
uma forma de confissão (como o foi para António Nobre, por exemplo) e,
portanto, de total compensação do irrealizável na vida. Longe de ser confissão,
a literatura foi para Antero, através das várias fases da
sua obra, antes de mais uma forma de revolta e de exigência absoluta do
pensamento para lá do relativismo do sentimento. Como diz Oliveira Martins
no prefácio aos Sonetos: Antero é um poeta que sente, mas é um raciocínio
que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa. Como diria mais tarde Pessoa
de si mesmo: O que em mim sente, está
pensando.
Mas a Antero
faltava a ironia niilista de Pessoa para dar a este drama
pensamento-sentimento uma feição essencialmente lúdica. Para Antero,
pensar e sentir deveriam conjugar-se para um mesmo fim: agir. E agir como um
condutor de povos, como um iluminado. Se não chegou a ser um condutor de povos,
Antero foi, no entanto, o
mestre incontestado e incontestável da Geração de 70, o seu
supremo inspirador, o seu trágico símbolo. E foi-o desde o
momento em que, tendo deixado a família fidalga e letrada de proprietários rurais
da cidade de Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, onde nasceu a 18 de Abril de
1842, partiu para Coimbra e aí
começou a impor-se no meio estudantil». In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 -
Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.
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