domingo, 11 de maio de 2014

Onze Contos de Futebol. Camilo Cela. «Na capital da república, o eleitorado (alguns chamam-lhe afición) saiu para a rua ao duplo grito de Pipí, Popó, enquanto os operadores dos noticiários cinematográficos recolhiam momentos tão históricos…»

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Calhamaço primeiro. A Lota

O livre-câmbio não é um princípio teórico: é uma conveniência.

«(…) Do judeu Rodrigo López e da sua morte no patíbulo fala Shakespeare em o Mercador de Veneza. As crónicas daquele tempo assinalam que Rodrigo López, mais conhecido por Catalino Toledo, ostentava suíças berberes, para melhor dissimulação, e coleccionava onças de ouro e ágeis escravos capazes de trotar durante noventa minutos. De nada lhe valeu, dado que a sua alma arde nos infernos (como é mais provável). Catalino Toledo alimentava-se de minhocas da terra, para se conservar eternamente jovem, e só bebia leite de burra aromatizado com três pitaditas de canela de Ceilão: uma para convocar os maus pensamentos, outra para lhe despertar as palpitações do paladar, e a terceira para eventualidades e imprevistos. Com as suas manhas e indisciplina, Catalino Toledo trouxe os familiares do Santo Ofício (maldito) pelas ruas da amargura. - E é verdade que teve um pacto com o diabo? - Pois, olhe, senhor, isso não se pode saber, mas também não me admiraria. Catalino Toledo era um hereje muito atrevido e eficaz, muito descarado e seguro de si mesmo.
No século XIX, um descendente de Catarino Toledo, o jovem bem parecido Memio López Valbuena, mais conhecido por Drogón Toledo, chegou a guarda de Corps, ofício de que foi afastado devido à sua amizade com o poeta Espronceda. Drogón Toledo morreu em Vera de Bidasoa, pelejando às ordens de Chapalangana. - E como é que Drogón não foi comerciante? - Pois é como vê: pelos vistos andava muito entretido com essa coisa do Romantismo. Um dos bisnetos do amigo de don José de Espronceda e soldado de don Joaquín de Pablo, Chapalangarra, vamos lá, quer nomear um dos bisnetos do Drogón de Toledo, o bisneto a quem chamam Timolao López Laguna, mais conhecido por Quincio Toledo, é actualmente patrão de pesca de um clube de possíveis, e já fez, pelo menos, doze viagens ao fim do mundo com o propósito de contratar Pipí e Popó, a pérola Negra e o Diamante Negro, respectivamente. Tanto Pipí como Popó são difíceis de contratar porque, no seu país de origem, o governo, em defesa dos interesses pátrios, arbitrou muito avultadas remessas do orçamento nacional com o objectivo de prevenir a catástrofe que representaria a partida dos dois mancebos negros retintos para o estrangeiro.
Na capital da república, o eleitorado (alguns chamam-lhe afición) saiu para a rua ao duplo grito de Pipí, Popó, enquanto os operadores dos noticiários cinematográficos recolhiam momentos tão históricos em centenas e centenas de metros de filme. o ministro dos Negócios Estrangeiros, dirigindo-se à multidão excitada, asseverou que o seu país iria colocar perante a ONU a predação que tentavam levar a cabo os inimigos históricos da democracia, neste caso com a ajuda das oligarquias internacionais e com o desprezo do princípio da autodeterminação». In Camilo José Cela, Once Cuentos de Futbol, 1963, Onze Contos de Futebol, Edições ASA, Porto, 1994, ISBN 972-41-1305-1.

Cortesia ASA/JDACT