Menina e Moça e o seu mau signo
«(…) Do exame da Consolação e da Menina e Moça salta à
vista que o compositor teria sido o mesmo. Também semelhante circunstância se
esclarece, admitindo a hipótese do seu conhecimento unilateral quanto a línguas
neo-românicas, conjugado com a necessidade de ganhar a vida, o culto das coisas
portuguesas e a saudade do passado. O enliçamento que prende o espírito ao
entrecho da novela actuaria não menos no sentido de se dar à estampa uma obra
tão longe da terra que a produzira e onde poderia encontrar público
remunerador. Atente-se para o prefácio da Consolação em que Samuel Usque declara
oferecer aos judeus desterrados, nostálgicos da terra mãe de que eram barbaramente
esbulhados, por muitos meios e longo
rodeio algum alívio aos trabalhos. Cotejando os textos e observando as
analogias gráficas, reconhece-se que não se trata apenas de trabalhos saídos da
mesma oficina, mas de trabalhos obedientes porventura a idêntica inspiração e
executados pelo mesmo artífice.
O facto de esta estampa da Consolação não ser citada no Catálogo dos livros proibidos de 1581,
versando matéria de apologética, atribui-a Mendes dos Remédios à sua raridade,
no que concordamos, supondo que fosse intuito do autor introduzi-la em
Portugal. Já a Menina e Moça, figura no rol em questão, não se sabe bem por
que pecadilhos, se aqueles de que se falou acima, se os implícitos nas frases
expungidas na edição de 1645. Depois
dos estudos exaustivos de Teófilo Braga, Carolina Michaëlis, Delfim Guimarães,
Marques Braga, António Salgado Júnior e Fraülein Grokenberger acerca da obra e
personalidade de Bernardim, tudo o
que se diga e não venha escudado de documentos novos terá que ser inevitavelmente
acessório e circunstancial. Aqui e além poderá dissentir-se do pormenor
conducente a conceitos menos proporcionados e juízos tantas vezes temerários,
que será necessário ajustar, mas na generalidade os trabalhos em questão, considerados
no seu enxamblamento sinóptico, constituem uma obra de exegese literária,
admirável sem dúvida e única na nossa língua. Para nós só têm um defeito, o de
representarem um esforço que supera de muito o valor da obra estudada. A meu
ver poderia aplicar-se-lhes o rifão: vale
mais o molho do que o polho. Dentre eles, é de consciência que se
distinga o duplo estudo de Teófilo, o grande desbravador do assunto com a sua
imaginação culta, ousada e criadora, se bem que muitas vezes susceptível de
revisão, o estudo de Carolina Michaëlis, dum saber vasto e probo, com o sentido
raro, penetrantíssimo da ilação, servido por um génio meticuloso e porfiado, finalmente
o estudo de Salgado Júnior, com a sua análise ampla, multiangular, em que se
discerne um espéculo, tão diligente como perspicaz, a esquadrinhar o recôndito
das coisas indefinidas e subtis.
Tudo o que a razão, pelos processos do método indutivo, pode edificar
acerca da Menina e Moça encontra-se circunscrito nas citadas páginas. A
dificuldade está em se abrir caminho através delas, intrincada floresta de
factos pressupostos e de argumentos, muitos deles da mais sagaz inventiva. Mas
uma vez feita a clareira necessária e referenciada a posição, sucede-nos
perguntar, como aqueles portugueses que suportaram mil trabalhos até chegar ao
Preste João, um negralhaz boçal, insignificante em tudo, outro que não aquele que,
graças à distância ou à transposição, se coloria de maravilhosas tintas de
ludíbrio: Valeu a pena? A
nosso ver, a Menina e Moça é uma especulação de paranóico, lançada corrente calamo, se não de jacto, ao papel.
Testemunham-no o seu estilo primário, as incoerências e tom de solilóquio
lunático, arroubos líricos pueris, e as infinitas variações centrífugas,
abstraindo ainda das emendas, rasuras, remissões que o texto devia sofrer dos
diferentes copistas, que, por bem, nunca deixavam de trazer de sua casa. A
edição de Évora, com efeito, fala dos traduzidores
que teriam metido colherada na obra, e da necessidade por consequência de pô-la a limpo, e os Usques na edição princeps o dizem: com suma diligência emendada. Carolina Michaëlis interpreta
semelhante reparo no sentido da corrigenda tipográfica com o propósito de
garantirem uma fiel e exacta reprodução, o que seria supérfluo dizê-lo, apenas se
justificando se se tratasse de obra reeditada. Para nós, trata-se da corrigenda
do texto, em face de traslado que a eles, competentíssimos homens de letras, não
satisfizera. E tanto assim que a Consolação às Tribulações de Israel,
composta pelo irmão Samuel e impressa um ano antes na mesma oficina, não vem
acompanhada da admonenda». In Aquilino Ribeiro, De Meca a Freixo de
Espada à Cinta, Ensaios Ocasionais, Menina e Moça e o seu mau signo, Livraria
Bertrand, Lisboa, 1960.
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