quinta-feira, 22 de maio de 2014

Cândido ou o Optimista. François-Marie Arouet. «Eu poderia pôr no mesmo plano as bancarrotas e a justiça que se apropria dos bens dos falidos para frustrar os credores. Tudo isso era indispensável, replicava o doutor zarolho, e as desgraças particulares fazem o bem geral»

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Como Cândido encontrou o seu antigo mestre de filosofia, Pangloss, e o mais que se segue
«(…) Ó Pangloss!, exclamou Cândido. - Que estranha genealogia! Não seria o diabo quem lhe fez o tronco? - Qual história!, replicou o grande homem. – Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um ingrediente necessário: porque se Colombo não tivesse apanhado numa ilha da América a doença terrível que envenena a fonte geradora, que chega mesmo a impedir a geração, e que evidentemente se opõe à grande finalidade da Natureza, nós não teríamos nem o chocolate nem a cochinilha. Além disso é conveniente afirmar que, pelo menos até aos nossos dias, e no nosso continente, esta doença é nossa propriedade privada, como a controvérsia. Os turcos, os hindus, os persas, os chineses, os siameses, os japoneses, ainda a não conhecem. Mas existe uma razão suficiente para que eles, por sua vez, a conheçam daqui a uns séculos. Enquanto espera, ela vai fazendo progressos maravilhosos entre nós, e sobretudo nesses grandes exércitos compostos de honestos soldados de boa presença que decidem do destino dos Estados. Pode-se garantir que, quando trinta mil homens combatem em batalha ordenada contra tropas iguais em número, há de cada lado cerca de vinte mil sifilíticos. - Tudo isso é admirável, disse Cândido, mas o mais urgente é tratar-vos. - Mas como? - disse Pangloss. - Não tenho vintém, meu amigo. E em toda a superfície da terra ninguém se pode mandar sangrar ou fazer um clister sem pagar, ou sem que haja alguém que pague por nós.
Estas últimas palavras determinaram a resolução de Cândido. Deitou-se aos pés do seu caridoso anabaptista Jacques e fez-lhe uma pintura tão comovente do estado a que o seu amigo estava reduzido que o bom homem recolheu sem demora Pangloss e fê-lo tratar à sua custa. Pangloss, depois de curado, não perdeu senão um olho e uma orelha. Como escrevia bem e sabia perfeitamente aritmética, o anabaptista Jacques nomeou-o seu guarda-livros. Ao fim de dois meses, sendo obrigado a ir a Lisboa por assuntos do seu comércio, Jacques levou no seu barco os dois filósofos. Pangloss explicava-lhe como tudo corria pelo melhor. Mas Jacques não era da mesma opinião. – Decerto, dizia ele, que os homens corromperam um pouco a Natureza, porque não nasceram lobos e tornaram-se lobos. Deus não lhes deu nem canhões de vinte e quatro nem baionetas, e eles imaginaram os canhões e as baionetas para se destruírem. Eu poderia pôr no mesmo plano as bancarrotas e a justiça que se apropria dos bens dos falidos para frustrar os credores. Tudo isso era indispensável, replicava o doutor zarolho, e as desgraças particulares fazem o bem geral. De modo que quanto mais houver desgraças particulares, mais tudo irá bem. Enquanto ele discorria, o ar escureceu, os ventos sopraram dos quatro cantos do mundo, e o barco foi assaltado pela mais horrorosa das tempestades, à vista do porto de Lisboa». In François-Marie Arouet (Voltaire), Candide ou L’Optimisme, Cândido ou o Optimista, Guimarães Editores, Lisboa, 2009, ISBN 978-972-665-578-7.

Cortesia de GuimarãesE./JDACT