O Humanismo em Portugal no
reinado de João III (1521-1557)
«Damião de Gois desembarcou em Lisboa em Agosto de 1545, possivelmente sob o domínio de fortes emoções. Tendo saído de
Portugal ainda moço, voltava agora como humanista de renome, casado e pai de
três filhos. Com que orgulho não teria apresentado a Johanna o porto
movimentado e a colorida cidade de Lisboa no cimo de altivas colinas! Mas era
um regresso ensombrado. Johanna tinha trocado o seu mundo familiar por um país
totalmente estranho, e o próprio Damião
não negava que teria preferido viver no estrangeiro. Embora parecesse contar
com um futuro brilhante na pátria, ao chegar encontrou Portugal mergulhado num
aceso debate intelectual, que acabou por afectá-lo pessoalmente, e aflito com
dificuldades económicas. Góis conta
que o rei Manuel I tinha incutido nos filhos o amor pelo saber e pela cultura.
e que o Príncipe João, seu sucessor, tinha recebido uma sólida formação
historica. Desse modo o rei parecia bem apetrechado para modernizar as
instituições de ensino superior em Portugal, uma vez resolvidas as questões no
ultramar. É surpreendente que as gerações posteriores não tenham devidamente
reconhecido tudo quanto ele fez, mas talvez nenhum outro dirigente português se
tenha prestado tanto a juízos erróneos. João III tem sido descrito como fanático,
hipócrita, homem de escassa cultura, e é precisamente um dos propósitos deste
capítulo apresentar dele uma imagem mais realista. Veremos que não era tão
fanático como pretendiam os seus inimigos e que a Inquisição (maldita) era tanto um instrumento calculado
para aumentar o orçamento como para eliminar os hereges. A atitude que adoptou
na controvérsia sobre a Igreja Etíope já demonstrou o seu pragmatismo, que os
seus opositores classificavam de hipocrisia.
A reforma académica de João III veio demasiado tarde e foi, portanto,
menos eficiente do que se tivesse sido iniciada a tempo. A tolerância do rei
para com vários grupos de humanistas de convicções largamente divergentes já
não estava de harmonia com a rápida evolução na maneira de pensar do século. Ao
associar-se com humanistas liberais, erasmistas e conservadores, assim como com
os Jesuítas. João III mostrava ter um espírito muito mais aberto do que
qualquer outro governante da sua época, mas foi exactamente essa faceta da sua reforma
que não lhe sobreviveu por muito tempo. A vida académica em Portugal foi em
breve encaminhada para uma única via e, em consequência, os esforços de João
III para estabelecer uma comunidade culta, composta por elementos variados, foram
vistos a uma luz negativa.
Gil Vicente marcou o início do florescimento cultural do
Portugal quinhentista, assim como Luís de Camões marcou o seu fim. Gil
Vicente, favorito da corte, foi autor de numerosos autos que tiveram um
vasto público. A enorme produção literária deste poeta assim como os seus
escritos reflectiam uma era de grande orgulho nacional e uma certa tendência
para a crítica social e religiosa. Gil Vicente apoiava com entusiasmo a
expansão além-mar do seu país mas, da mesma maneira que outros autores
portugueses, como o historiador João de Barros, referia-se ironicamente
à degradação da vida monástica, e, tal como o humanista flamengo Clenardo,
censurava as camadas mais altas da sociedade portuguesa pela sua indolência e
amor do luxo. Conquanto os seus laços com a Idade Média fossem acentuados,
exprimia às vezes ideias bastante modernas. Em 1531, num discurso que ficou famoso, feito aos frades dum mosteiro
em Santarém, o poeta descreveu dois mundos, o
mundo de Deus e o mundo do homem. Pintava um quadro colorido do
universo de Deus, eternamente igual, realidade imutável, enquanto que imaginava
o mundo dos seres humanos como um fluxo constante, um eterno devir, essencialmente uma luta entre opostos como o
verão e o inverno, a noite e o dia, e, por causa dos seus paradoxos, um
enigma para a compreensão do homem». In Elisabeth Feist Hirsch, The Life and Thought of a Portuguese
Humanist, The Hague Netherlands, 1967, Damião de Góis, Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 2002, ISBN 972-31-0677-9.
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