domingo, 25 de maio de 2014

Menina e Moça. O seu mau signo. De Meca a Freixo de Espada à Cinta. Aquilino. «E estamos a ver Bernardim Ribeiro na sua cela do Hospital de Todos os Santos, curvado sobre a banqueta, de pena de pato em punho. Seria um homem de meia idade, ar enfermiço, incoerente no dizer, mas nada perigoso…»

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Menina e Moça e o seu mau signo
«(…) Nao deve, pois, tomar-se como expressão do protocolo editorial, em regra adstrito ao colophon. Igualmente discordamos de que Bernardim obedecesse na elaboração da obra a qualquer plano preestabelecido, ou o movessem intuitos de publicidade. A Menina e Moça pelo seu valor, repetimos, é produto de mão automática, conduzida pelo subconsciente à maneira de tantas obras célebres e caóticas, como por exemplo o Apocalipse de S. João. Por outro lado, àquela altura da inteligência lusitana, o exercício das letras estava muito longe de representar um mester. Apenas para os escrivães da puridade elas constituíam matéria de salariato. Versejava-se como se dançava ou tangia cítara. A prosa, de resto, não gozava de grande dignificação. Em despeito das novelas de cavalaria e do timbre que lhe imprimira Sanazaro com a novela pastoril, prosa entremeada de écloga, a matéria plástica nobre em literatura continuava a ser o verso.
A poesia, se, dom celestial, para uns não era mais que o violão de Ingres, para outros servia de viático no acesso a tais e tais cargos ou comendas. Foi mercê de semelhante altarum que Andrade Caminha, Diogo Bernardes e tantos outros do seu ciclo, marcados com a etiqueta de palacianos, se guindaram às chorudas conezias que usufruíram na Corte ou as guardaram, o que exigia ainda certa arte, ou quando menos boa quota de mérito pessoal. E estamos a ver Bernardim Ribeiro na sua cela do Hospital de Todos os Santos, curvado sobre a banqueta, de pena de pato em punho. Seria um homem de meia idade, ar enfermiço, incoerente no dizer, mas nada perigoso, internado no estabelecimento porque andaria a bater com a cabeça pelas paredes e teria cometido mais duma vesânia de que resultava prejuízo ao seu nome de fidalgo e ao decoro que se devia a si e à classe. Era preciso pôr-lhe cobro, e parentes e próximos, como hoje, como sempre, recorreram à hospitalização. Tratado com os desvelos que não podiam deixar de garantir a alta patente social e o prestígio de poeta, visitado por uns e outros, gente amiga e de prol, em dado momento a sua crise de maníaco depressivo determinou-se no sentido da expansibilidade sem regra nem medida, esvaziando o seu ethos ebuliente e desconforme. E ei-lo a cobrir laudas e laudas de papel com uma escritura galopante e compacta, como se depreende da mancha tipográfica das primeiras edições e, por analogia, do apógrafo de Madrid. Texto cerrado sem a menor intersecção de capítulos e parágrafos já em uso àquele tempo, o que quer dizer, não pensando de modo algum no leitor, o comparsa pio ou pirrónico cuja simpatia o homem de letras normal procura sempre conciliar, sem uma aberta, salvo as alíneas, essas com certeza do punho do tipógrafo, que  principiam com maiúsculas e que correspondem ao rasgamento de capítulos da edição de Évora. O Livro das Saudades, se é de admitir que de algum designativo beneficiasse a meio do mundo tumultuoso, informe, incoordenado, que cachoava no peito do autor e de que escorreu a confissão como duma cratera um rego de lava, e não foi crisma de qualquer copista anónimo ou de qualquer interventor, teve este génesis. Sobre os cunhos consabidos da novela de cavalaría, ajeitados às formas tenras da novela pastoril, o poeta tomado de melancolia delirante vazava o caso pessoal, uma aventura de amor com todo o rescaldo de patético e de voluptuoso, ampliada e desenvolvida segundo a flora patológica que lhe excrescia da alma doente.
Não há dúvida que o entrecho da Menina e Moça envolve uma intriga de amores sensuais de que o instinto do autor saiu malferido. E tanto o seu espírito é dominado pela obsessão mórbida que não é capaz de manter na narrativa uma linha vectora e se perde como um viandante que, de noite pelo escuro, vá fazendo o seu caminho ao acaso das veredas que lhe bruxuleiam aos olhos. Uma apreciável vis poética, sem falar na ideia fixa possessiva, o robora no seu propósito. Bernardim tem um tanto a consciência hipertrofiada do seu destino e mormente a do seu dom literário». In Aquilino Ribeiro, De Meca a Freixo de Espada à Cinta, Ensaios Ocasionais, Menina e Moça e o seu mau signo, Livraria Bertrand, Lisboa, 1960.

Cortesia de LBertrand/JDACT