O Príncipe (1798-1822)
«(…) Embora a mudança da capital para a América do Sul constitua aos
olhos da História uma medida acertada, pois garantiu, segundo René Rémond, o princípio e a existência do Estado,
tal qual o farão em 1940 vários
governos europeus ante o avanço hitleriano, não deixa de ser exacto que, na
época, a decisão régia provocou acesa discussão e deu azo a desencontradas
reacções, alimentadas pela ordem do regente de não resistência ao invasor, da proclamação
do fim do governo dos Braganças no reino por Junot, pelas exigências fiscais,
pelo desrespeito pela Igreja e profanação de templos, pela deslocação e morte
de pessoas, pela destruição de casas, fábricas, colheitas, etc., por parte do
invasor.
Na travessia do Atlântico, Pedro viajou com a rainha-avó, D.
Maria I, o pai (o futuro João VI) e o seu irmão Miguel na nau Príncipe Real, de oitenta e quatro
canhões, considerada no tempo uma das melhores da Europa. D. Carlota Joaquina e
as quatro filhas utilizaram outro vaso de guerra, o Afonso de Albuquerque. As princesas seguiram num terceiro navio, o Rainha de Portugal. Testemunhos
disponíveis revelam que o príncipe herdeiro enfrentou com ânimo e até com prazer
a viagem para o Brasil, através do oceano, ora bonançoso, ora revolto pela
tempestade, tendo em mente Eneias, herói do poeta latino Virgílio.
É sabido que Pedro gostava de escutar os feitos dos soldados portugueses, admirava
os seus heróis e decerto, como a tantos, já então Napoleão causava-lhe espanto.
A grandeza dos portugueses de antanho e até a bravura de muitos na guerra do
Rossilhão ou nas operações navais anglo-lusas daquelas naus contra os franceses
foram decerto assunto de confabulações com amigos e servidores durante a longa travessia
da Europa para a América do Sul. Simultaneamente, inteirou-se da vida a bordo e
deu-se aos cálculos astronómicos da navegação, manuseando os respectivos
instrumentos, não sem imitar os tripulantes nalguns dos seus actos de
marinharia.
Em virtude de tempestades atlânticas, a nau régia aportou à cidade de Salvador
da Baía, tradicional zona açucareira e antiga capital da colónia, cidade de
edifícios majestosos, ornada de igrejas e conventos ricos, de uma população
buliçosa, sita em lugar de rara beleza tropical, onde, a par dos naturais,
abundavam os mestiços, os negros e brancos reinóis. A população da Baía
exultou com a passagem da comitiva real e gostaria de a hospedar, recuperando a
qualidade de cabeça do Brasil e agora sede da corte. Depois a esquadra seguiu
para o Rio, cidade inigualável, onde os monarcas foram recebidos, com
todas as honras, pelo vice-rei, conde de Arcos, e com entusiasmo pelos seus
habitantes, pejados de júbilo. A partir da nova capital, João VI criará as
bases do reino do Brasil. Ainda na Baía, em Janeiro de 1808, o regente abre os portos do Brasil
às nações amigas, influenciado pelas ideias liberais do economista brasileiro José Silva Lisboa e pelo que antes
acordara com os britânicos. A Inglaterra é a beneficiária desta decisão e do Tratado
de Comércio e Navegação celebrado em 1810,
que prejudicam tanto Portugal como o Brasil.
No Rio, o funcionamento da capital e a estada da corte obrigam ao
estabelecimento de uma série de instituições novas. Surge assim o Supremo
Conselho Militar e de Justiça, a Mesa do Desembargo do Paço, a Mesa da
Consciência e Ordens, a Casa da Suplicação, em que se transforma a Relação,
a Intendência Geral da Polícia, o Arquivo Militar, a Impressão Régia,
[…] quer dizer o estabelecimento da
Administração Pública no Rio de Janeiro, decretos liberalizadores da condição colonial
do Brasil [...] e realizações de influência imediata, tanto política, como
social e económica, [que] permitiram avanços rápidos no desenvolvimento
do Brasil, salienta o historiador brasileiro Gonsalves Melo. Novas estradas
sulcam o interior. O alvará de 1795 que obstava à
existência de fábricas e indústrias foi eliminado. Criam-se cursos de Medicina,
de Comércio, de Belas-Artes, a Biblioteca Pública. Vêm a lume jornais e livros
antes proibidos de imprimir em prelos brasileiros. De 1808 data a fundação da
Gazeta do Rio de Janeiro. No quadro das guerras antinapoleónicas, logo em 1809, por ordem do regente João, uma
esquadra luso-britânica ocupa a Guiana francesa». In Luís Oliveira Ramos, D. Pedro,
Imperador e Rei, Experiências de um Príncipe (1798-1834), Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, Temas Portugueses, Lisboa, 2007, ISBN
978-972-27-1428-0.
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