quinta-feira, 15 de maio de 2014

A Heteronímia de Pessoa. Ensaio. Mário Saraiva. «Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho…»

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«(…) Entenda-se que a semi-despersonalização descrita não passou na vida de Fernando Pessoa de momentos de exaustão mental. Claro que semelhantes crises despersonalizantes não são compatíveis com o fenómeno heteronímico, porquanto este, contrariamente, é personificante. E notemos que as crises mais simples de dissociação a dois são as propícias à criação de heterónimos. São esses que propiciam transmutações de carácter, que é o observado nas duplicidades embora variáveis. A circunstância leva o poeta a escrever:

Se penso ou sinto, ignoro
quem é que pensa ou sente,
sou somente o lugar
onde se sente ou pensa
tenho mais almas que uma
há mais eus do que eu mesmo.
(Odes de Ricardo Reis)

No Livro do Desassossego (doravante, LD) adianta: Na vasta colónia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente. Aqui está, mais uma vez, incluída a explicação originária de muitos heterónimos de Pessoa. E continuando a descrever o seu agitado estado psíquico e a sua heteronímia: Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente… Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários actores representando várias peças (LD). Destruí-me diz, porque realmente o espírito se destruiu na sua integridade e, destruída esta, o que fica da personalidade própria? O nosso doente responde, porque ele, por hábito, responde a tudo: Numa grande dispersão unificada, ubiquito-me neles e eu creio e sou a cada momento da conversa, uma multidão de seres, conscientes e inconscientes, analisados e analíticos, que se reúnem em leque aberto. A seguinte quadra ajuda a entrar no íntimo da sua alma perplexa:

Chegado aqui, onde estou, conheço
que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso,
não conheço quem fui no que hoje sou.
(Poesia II)

Depois não admira que diga: Nem sempre sou igual ao que digo e escrevo (Poemas de Alberto Caeiro). … e que repete no LD: … personalidade … eu feliz ou infelizmente, não tenho nenhuma. Do que sou numa hora, na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci. Nas Odes de Ricardo Reis em Apontamentos Íntimos, repisa: … Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quadro com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas. Uma única anterior realidade que não está em nenhum e está em todos (Odes de Ricardo Reis). Estamos perto, bem se vê, de uma dissociação mental a raiar a alienação completa. Mas (o que é pior; ou melhor), Pessoa conhece o estado complicado e insanável que o tortura e o desorienta». In Mário Saraiva, A Heteronímia de Pessoa, Brotéria Cultura e Informação, volume 138, 1994.

Cortesia Brotéria/JDACT