quinta-feira, 8 de maio de 2014

Memnon ou a sabedoria humana. Voltaire. «As pernas de ambos deixaram de estar cruzadas. Memnon aconselhou-a tão de perto, e deu-lhe indicações tão ternas, que já nenhum deles era capaz de falar de negócios, e não sabiam bem em que ponto estavam»

jdact

«Memnon concebeu um dia o projecto insensato de se tornar perfeitamente sábio. Não há ninguém a quem esta loucura não tenha passado pela cabeça, ao menos uma vez na vida. Memnon disse de si para consigo: para se ser muito sábio, e consequentemente muito feliz, basta que se dominem as paixões; e nada é mais fácil, como é sabido. Antes de mais nada, nunca mais hei-de amar nenhuma mulher; pois sempre que vir uma beleza perfeita direi a mim próprio: Essas faces hão-de um dia ficar cheias de rugas, esses belos olhos ficarão sombreados de vermelho; esse peito redondo ficará chato e descaído; essa bela cabeça ficará calva. Ora bastará olhá-la agora com os mesmos olhos com que então a veria; e com toda a certeza essa cabeça não me fará perder a minha. Em segundo lugar, hei-de ser sempre sóbrio; por mais tentado que me sinta pela boa mesa, os vinhos capitosos, as seduções da sociedade, bastar-me-á pensar nas consequências dos excessos, a cabeça pesada, indisposições de estômago, a perda da razão, da saúde e do tempo; comerei só quando precisar; terei sempre boa saúde, ideais puras e luminosas. É tudo tão fácil que não há mérito nenhum em consegui-lo. Depois, pensava Memnon, terei de pensar um pouco na minha fortuna; os meus desejos são moderados; os meus bens estão solidamente colocados na recebedoria-geral das finanças de Nínive; o que tenho basta-me para viver independente, e este é o maior dos bens. Nunca terei a cruel necessidade de pedir favores a ninguém; não invejarei ninguém, e ninguém me invejará. Isto também é facílimo. Tenho amigos, continuou ele, e hei-de conservá-los, pois eles não terão nada a disputar-me. Nunca me zangarei com eles, nem eles comigo. Isto não tem dificuldade nenhuma.
Depois de ter assim feito o seu planozinho de sabedoria dentro do quarto, Memnon meteu a cabeça pela janela. Viu duas mulheres a passear sob os plátanos que ficavam em baixo. Uma delas era velha e parecia não pensar em nada. A outra era nova, bonita, e parecia muito preocupada. Suspirava, chorava, e isto ainda lhe dava mais encanto. O nosso sábio sentiu-se comovido, não com a beleza da dama (tinha a certeza de não ser acessível a tais fraquezas) mas com a aflição em que a via. Desceu e dirigiu-se à jovem niniviana com o propósito de a consolar com sabedoria. A bela rapariga contou-lhe com ar ingénuo e comovente todo o mal que lhe fazia um tio que não tinha; com que artifícios lhe estava ele tirando uns bens que nunca possuíra, e tudo o que tinha a recear da violência dele. Pareceis-me um homem tão sensato, disse-lhe ela, que, se tivésseis a condescendência de vir a minha casa e de examinar os meus assuntos, tenho a certeza que me poderíeis salvar da triste situação em que me encontro.
Memnon não hesitou em segui-la, para examinar sabiamente os seus assuntos e para lhe dar um bom conselho. A preocupada dama levou-o para um quarto perfumado e mandou-o delicadamente sentar-se junto dela num grande sofá, onde ficaram ambos de perna cruzada um em frente do outro. A dama falava baixando os olhos, dos quais deixava por vezes cair lágrimas, e que ao erguerem-se encontravam sempre o olhar do sábio Memnon. Falava com uma ternura que redobrava de cada vez que olhavam um para o outro. Memnon interessou-se profundamente pelos assuntos dela, e sentia-se cada vez com mais vontade de obsequiar uma pessoa tão honesta e tão infeliz. Com o ardor da conversa, deixaram, sem dar por isso, de estar um em frente do outro. As pernas de ambos deixaram de estar cruzadas. Memnon aconselhou-a tão de perto, e deu-lhe indicações tão ternas, que já nenhum deles era capaz de falar de negócios, e não sabiam bem em que ponto estavam.
No momento em que iam aí chegou o tio, tal como era de esperar: estava armado da cabeça aos pés; e a primeira coisa que disse foi que ia matar, como era justo, o sábio Memnon e a sobrinha; a última que deixou escapar foi que poderia perdoar a troco de muito dinheiro. Memnon foi obrigado a dar tudo o que tinha. Nesse tempo tinha-se a sorte de escapar a um sarilho desses por tão pouco dinheiro; ainda não se tinha descoberto a América; e as damas aflitas não, nem de longe, eram tão perigosas como hoje em dia». In Voltaire, La Princesse de Babylone, A Princesa de Babilónia, Memnon ou a Sabedoria Humana, Biblioteca de Babel, Editora Vega, Lisboa, 1989.

Cortesia de Vega/JDACT