Calhamaço primeiro. A Lota
O livre-câmbio não é um princípio
teórico: é uma conveniência.
«(…) O ministro do Interior acusou as sociedades secretas de quererem
minar os fundamentos tradicionais da sociedade. O ministro da Defesa, escondido
por detrás do seu farto bigode, trovejou contra o imperialismo e preconizou fazer
de cada coração um estreito das Termópilas, e o jovem ministro da
Cultura, com uma muito fria e raciocinada dialéctica, explicou aos correspondentes
estrangeiros que a ausência de Pipí e Popó do solo pátrio provocaria no solo pátrio
uma ferida muito difícil de estancar. O eleitorado ficou muito sossegado quando
Pipí e Popó, perante os ecrãs da televisão, declararam que saudavam as suas
famílias e todos os bons apoiantes em geral.
Quincio Toledo, disfarçado de freira do Sacré Coeur, estabeleceu contactos com os chefes da oposição, aos
quais ofereceu (como é costume) linótipos e metralhadoras, e distribuiu
os textos de Adam Smith entre o eleitorado, com o objectivo de amansá-lo.
Quincio Toledo era muito amigo e admirador de Disraeli (ainda mais amigo e
admirador de Disraeli do que a menina Elvira, a sua comentadora) e agia
mais por conveniência do que por princípios.
Quincio Toledo cuida amorosamente dos seus escravos, enquanto não ficam
com barriga ou adquirem maus costumes, e alimenta-os com ouro, tal como Belzebu
faz comos seus dragões, para que não se escapem. Quincio Toledo (de
solteiro e livre, Timolao López Laguna) sente-se, às vezes, preso do seu
próprio poder: então, rapa o bigode e põe-se a dieta de fruta e lê os poetas (mas
não há maneira). Segundo a teoria do livre-câmbio, Quincio Toledo deveria
ser esbelto como um bailarino.
Quincio Toledo, como é poderoso e poupado, acredita na lei da oferta e
da procura, pressuposto táctico que faz estremecer as comunidades economicamente
débeis: bancos de sardinhas, rebanhos
de cabras, alunos do primeiro ano de Direito, etc. Entre os axiomas de
Quincio Toledo está previsto o desterro da caridade (virtude que não cabe
aos triunfadores) e a difusão das lucubrações de Nietzsche (que tão eficazmente
cooperam para a consequência da derrota próxima).
Quincio Toledo, num Verão em que leu Comeille (qui peut tout, doit tout craindre) esteve mais de oito dias sem
fechar olho e a olhar para debaixo da cama não fosse lá estar um ladrão. Às vezes,
os heróis têm que tomar sais de frutos e
fumar cigarrilhas holandesas, que são de muito alimento. - E o senhor acha
que Quincio Toledo vai conseguir
trazer Pipí e Popó? - Sei lá, olhe, eu não sou bruxo. Vá lá saber-se o
que irá acontecer! O mundo anda muito agitado e a cada dia que passa é mais
difícil fazer prognósticos. O que lhe digo, isso sim, é que se Quincio Toledo
não os trouxer, mais ninguém os vai trazer: disso pode ter a certeza. É dos
bons, esse Quincio Toledo! Se tivesse nascido índio pele-vermelha, o mais
provável era terem-no chamado Olho de
Lince Astuto e Malicioso, não tenha dúvida. Que grande chefe
pele-vermelha perderam as amplas savanas de Utah! O senhor não acha? - Se acho!
Do judeu Rodrigo López, mais conhecido por Catalino Toledo, falou Shakespeare.
Do seu descendente, Timolao López Laguna, mais conhecido por Quincio Toledo,
fala a Hoja del Lunes quase todas as
segundas-feiras. O que interessa é ficar na história. Cervantes, numa manhã em que
se sentiu culto, bateu à porta da história: émula do tempo, depósito das
acções, testemunha do passado, exemplo e prenúncio do presente, aviso do tempo vindouro.
Quincio Toledo como, além de o ser, se sente carne histórica, toma
pequeno-almoço de faca e garfo». In Camilo José Cela, Once Cuentos de Futbol,
1963, Onze Contos de Futebol, Edições ASA, Porto, 1994, ISBN 972-41-1305-1.
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