Auschwitz-Birkenau, Janeiro de 1944
«(…) A inspecção é outra coisa. É preciso formar, há buscas, por vezes
os mais pequenos são interrogados numa tentativa de lhes arrancar informações
tirando partido da sua ingenuidade. Nunca conseguiram sacar-lhes o que quer que
fosse. As crianças mais pequenas compreendem muito mais do que as suas carinhas
sujas de ranho dão a entender. Alguém sussurra: O Padre! E cresce um murmúrio de desolação. É assim que chamam a um
sargento das SS (um Obersharführer) que anda sempre com as mãos enfiadas nas
mangas do dólman, como um clérigo, mas cuja única religião conhecida é a
crueldade. - Vamos, vamos, vamos!, diz vejo, vejo….! - E vejo o quê, senhor
Stein? - Qualquer coisa! Pelo amor de Deus, filho, qualquer coisa! Há dois
professores que levantam a cabeça, angustiados. Têm nas mãos algo que é
rigorosamente proibido em Auschwitz e pode condená-los à morte se forem
descobertos. Esses objectos, tão perigosos que a sua posse é motivo para a pena
máxima, não se disparam, não são cortantes, perfurantes ou contundentes. Aquilo
que os implacáveis guardiães do Reich tanto temem são apenas livros: livros
velhos, sem capas, desfolhados, quase desfeitos, mas, são sempre páginas de
conhecimento, por menor que seja o seu número para a literacia inerente a
qualquer cidadão (se calhar… colados numa coluna de uma biblioteca…, digo
eu). Mas os nazis odeiam-nos, caçam-nos e proscrevem-nos com uma
ferocidade obsessiva. Ao longo da História, todos os ditadores, tiranos e
opressores, fossem arianos, negros, orientais, árabes ou eslavos, fosse qual
fosse a cor da sua pele, quer defendessem a revolução popular, os privilégios
dos ricos, o primado de Deus ou a disciplina sumária dos militares, fosse qual
fosse a sua ideologia, tiveram uma coisa em comum: todos, sem excepção,
perseguiram os livros com uma sanha feroz. Os livros são perigosos, fazem pensar.
Os pequenos grupos mantêm-se nos seus lugares, a cantar, enquanto esperam
a chegada dos guardas, mas uma rapariga quebra a harmonia própria de um
barracão de entretenimento e começa a correr por entre os círculos de
tamboretes. - Para o chão! - Que estás
a fazer? Enlouqueceste?
- gritam-lhe. Um professor tenta agarrar-lhe um braço, para a deter, mas ela
esquiva-se e continua a correr aos tropeções, quando o que se deve fazer é
ficar quieto e passar despercebido. Trepa à lareira horizontal com um metro de altura
que divide o barracão em duas metades e salta para o outro lado. Na sua louca
corrida, derruba um dos bancos, que rola com estrondo pelo chão, silenciando
por um instante todas as actividades. - Maldita sejas! Vais denunciar-nos a
todos!, grita-lhe a senhora K, vermelha de fúria. As crianças, quando
ela não pode ouvi-las, claro, chamam-lhe senhora Odre. E ela não sabe que foi a
rapariga com que agora grita que inventou a alcunha. - Senta-te lá ao fundo com
os ajudantes, estúpida! Mas a rapariga não se detém, continua a correr alheia
aos olhares de reprovação. Muitas das crianças observam, fascinadas, como corre
com as finas pernas enfiadas numas meias de lã às riscas horizontais. É uma rapariga
muito magra, mas não doentia, com cabelos castanhos que balouçam de um lado
para o outro enquanto ziguezagueia veloz por entre os grupos. Dita Adlerova
move-se no meio de centenas de pessoas, mas corre sozinha. Corremos sempre sozinhos. Chega, a serpentear, ao centro do
barracão, e ali abre caminho, aos empurrões, pelo meio de um grupo. Afasta com
brusquidão um banco do seu caminho, e uma garotinha rola pelo chão. - Eh, o que
foi que te deu!, grita-lhe a ofendida. Espantada, a professora de Bruno vê a
jovem bibliotecária deter-se, ofegante, à sua frente. Sem tempo nem fôlego para
dizer seja o que for, Dita tira-lhe
o livro das mãos, e a professora sente-se de repente mais leve. Quando,
instantes depois, reage para agradecer, já Dita
vai a vários passos de distância. Faltam poucos segundos para que os nazis
cheguem.
O engenheiro M, que viu a manobra, já a espera fora do círculo. Dita pega no livro de álgebra na passada,
como se recebesse o testemunho numa corrida de estafetas. E corre com desespero
para o grupo de ajudantes que, ao fundo do barracão, fingem varrer o chão. Ainda
só está a meio caminho quando nota que as vozes dos grupos fraquejam por um
instante, tremulam como a chama de uma vela quando se abre uma janela. Não
precisa de se voltar para saber que a porta se abriu e os guardas SS estão a
entrar. Deixa-se cair e aterra no meio de um grupo de rapariguinhas de onze
anos. Enfia os livros debaixo do vestido e cruza os braços sobre o peito, para
evitar que caiam. As crianças olham-na de soslaio, divertidas, enquanto a
professora, muito nervosa, lhes indica com um gesto do queixo que não parem de
cantar. À porta do barracão, depois de observarem o panorama durante alguns
segundos, os SS gritam uma das suas palavras preferidas: - Achtung! Faz-se
silêncio. Cessam as cantiguinhas e o vejo,
vejo. Tudo se imobiliza. E, no meio do silêncio, ouve-se alguém assobiar a 5.ª
Sinfonia de Beethoven. O Padre é um
homem temível, mas até ele parece nervoso porque é acompanhado por alguém ainda
mais sinistro. - Que Deus nos ajude, ouve uma professora murmurar. A mãe de Dita tocava piano antes da guerra e por
isso ela reconhece a música de Beethoven». In Antonio G. Iturbe, 2012, A Bibliotecária
de Auschwitz, Dita Dorachova, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2013, ISBN
978-989-657-432-1.
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