quarta-feira, 30 de julho de 2014

O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média. Manuel Cadafaz Matos. «Ayras Nunes, por exemplo, apresenta-nos, no “Cancioneiro da Vaticana”, umas trovas votadas a Sant’Iago de Compostela, patrono da cidade onde exerceu o seu mester eclesiástico…»

Vias romanas do Centro de Portugal, ainda em uso na época da peregrinação da rainha D. Isabel (segundo Mario Saa)
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«(…) Pelo estudo da lírica trovadoresca que se encontra em torno de peregrinações ou santuários como o de Santiago de Compostela, poder-se-á, de igual modo, fazer um questionamento sobre os padecimentos ou males físicos que à altura mais afectavam a população (essencialmente rural), portuguesa ou espanhola. Dos males psíquicos aos físicos, das maleitas e tratamentos da mais variada espécie, encontra-se aliás por estudar detalhadamente tal problema nesta óptica. Afonso X foi a figura dominante da nossa lírica trovadoresca, dando assim o nome a este rico e produtivo período da quase totalidade da segunda metade do século XIII. Do período alfonsino chegaram até nós, no entanto, e ainda graças ao Cancioneiro da Ajuda, outros talentosos trovadores. Alguns deles legaram-nos, de igual modo, variadas estrofes que constituem verdadeiras invocações ao Apóstolo Sant’Iago:

Apostolo Santiago
cavaleiro muito honrado,
antre os mouros
muy esforçado...
Se vais a Santiago
compra-me um santiaguinho,
não mo compres grande,
seja pequenino.

Mas se todos os referidos poetas, representados no Cancioneiro da Ajuda, invocam com tal fervor ou ternura o Apóstolo de Compostela, vários são os autores representados no Cancioneiro da Vaticana que homenageiam, de igual forma, Sant’Iago. Do período alfonsino pertencem a este cancioneiro trovadores como Ayras Nunes Santiago, Joham Ayras Santiago (que cultivam com grande brilhantismo cantigas de amigo), Paay Gomes Charinho, bem como Pedro Amigo Sevilha, deixando-nos todos eles versos alusivos ao culto jacobeu peninsular. Quanto a Ayras Nunes Santiago, este apresenta-se-nos, segundo António José Saraiva e Óscar Lopes, como procurando de porta em porta e sem resultado uma Verdade que não existe em parte alguma, nem nos conventos e mosteiros, nem na cidade santa de Santiago de Compostela. Natural da Galiza, Ayras Nunes, que era um clérigo contemporâneo de Afonso X e de seu filho Sancho IV, apresenta-se-nos ainda hoje como um dos mais fecundos trovadores desse período.
Seu contemporâneo foi, de igual modo, o trovador Joham Ayras Nunes (que, também natural da cidade de Santiago de Compostela, visitou várias cortes e veio a Portugal ou nos fins do reinado de Afonso III ou nos primeiros anos do reinado de D. Dinis, sendo também um dos mais ricos trovadores deste período alfonsino. Conservaram-se dele até hoje cerca de 50 cantigas de amigo, 25 de amor e 10 de escárnio e maldizer. Da sua peregrinação, após a estada em Portugal, legou-nos estes significativos versos: Andey, senhor, Leon e Castela / depois que m’eu d’esta terra quytey. Naturais da cidade que conserva as relíquias do Apóstolo natural seria que tanto Ayras Nunes como Johan Ayras Santiago, desconhecemos se havia qualquer tipo de parentesco entre ambos, mantivessem nas suas trovas algumas alusões (mesmo que não muitas) ao santo padroeiro da cidade que os vira nascer. Ayras Nunes, por exemplo, apresenta-nos, no Cancioneiro da Vaticana, umas trovas votadas a Sant’Iago de Compostela, patrono da cidade onde exerceu o seu mester eclesiástico, significativas na sua qualidade poético-literária:

Em Sant’Iago seend’ albeergado
em mha pousada chegaron romeus,
preguntey-os e disserom: Par Deus,
muyto levadel’ o caminho errado;
cá se verdade quiserdes achar
outro caminho convem a buscar,
ca nom sabem aqui d’ela mandado.

In Manuel Cadafaz Matos, O Culto Português a Sant’Iago de Compostela ao longo da Idade Média, Peregrinações de homenagem e louvor ao túmulo e à cidade do Apóstolo entre o século XI e século XV, Instituto Português do Património Cultural, Lisboa, 1985.

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