Linguística missionária
«(…) Tal
incremento da actividade linguística missionária no século XVII só parece ter
sido possível com a cobertura de duas grandes instâncias: a Igreja de Roma e
a Coroa portuguesa. Em relação às instâncias eclesiásticas, note-se que a defesa da aprendizagem das línguas
orientais foi objecto de deliberação em decretos emanados dos cinco Concílios
Provinciais de Goa,
celebrados, entre 1567 e 1606, com representantes superiores da
Ordem Franciscana e da Companhia de Jesus. Do primeiro ao último destes Concílios saem recomendações de que os sacerdotes aprendam as
línguas das terras onde pregar, de
que se traduzam compêndios de doutrina cristã em língua da terra, de que se
façam livros para ensinar.
Quer dizer, há uma insistente preocupação do poder eclesiástico em defender,
entre curtos intervalos de tempo, a mais-valia da instrução vernácula. A mesma
política fora prosseguida por autoridades civis. O movimento de promoção de
línguas asiáticas encontrava eco da parte do poder político português, que,
entre 1580 e 1640, esteve unido à coroa de Castela. Embora os interesses dos
dois reinos vizinhos nem sempre fossem coincidentes,
note-se que quando o Oriente era o objecto primordial das atenções de Portugal,
os interesses de Espanha estavam centrados na América Latina, está patente, em
diversos documentos do período da união dinástica, o empenho da administração
de Portugal na difusão destas línguas, fosse por política diplomática ou
conveniência de interesses. Exemplos desta atitude proteccionista encontram-se
na correspondência trocada entre Lisboa e o Estado da Índia, no tempo em que
reinava o monarca espanhol Filipe II (1598-1621). Cartas assinadas por
punho régio obrigavam ao conhecimento das línguas locais por parte dos
ministros da igreja e as respostas, assinadas por governadores da Índia,
evidenciavam a ressonância das ordens régias.
Gramaticografia e lexicografia no Oceano
Índico
O processo de missionação linguística na
costa africana do Atlântico foi diferente do que ocorreu na África oriental e este, por sua vez, distingue-se do êxito linguístico dos
missionários católicos que operaram na Ásia. Relativamente à
costa atlântica, sintetize-se, de forma rápida, o conjunto de obras hoje
conhecidas que datam do século XVII: A primeira obra escrita em português e
numa língua africana que se editou em Lisboa, em 1624, foi a Doutrina cristã (…) traduzida na lingoa do Reyno
do Congo, do jesuíta Mateus Cardoso, que traduziu um popular
catecismo do padre Marcos Jorge. Em 1642 é editado, também em Lisboa, o
catecismo Gentio de
Angola svfficientemente
instruido nos mysterios de nossa sancta fe, do padre António
Couto, perito em quimbundo
por ser natural de Angola. Desta edição bilingue (português / quimbundo) saiu, em 1661, uma segunda edição acrescentada
com a tradução latina: Gentilis
Angolae Fidei Misteriis (em latim / português / quimbundo).
Já no fim do século, surge a primeira descrição gramatical do quimbundo, feita
pelo jesuíta Pedro Dias na Arte da lingva de Angola, offerecida a
Virgem Senhora N. do Rosario, mãy, & Senhora dos mesmos pretos (Lisboa,
1697).
Esta obra foi usada no Brasil pelos padres da Companhia de Jesus que se
ocupavam da conversão dos escravos trazidos de Angola.
Refira-se
ainda que a famosa obra gramatical sobre o quicongo publicada em latim,
em 1659, Regulae quaedam pro difficillimi Congensium idiomatis faciliori
captu ad grammaticae normam redactae, do capuchinho italiano Giacinto
Vetralla, foi traduzida para português em 1886 com o título Regras para mais fácil inteligência do
difícil idioma do Congo. Nas
áreas de língua suaíli, macua, sena, tsonga e de outras línguas da África Oriental,
o quadro é algo diferente, uma vez que não são conhecidas as obras linguísticas
de que dão notícia os registos bibliográficos:
- Da vasta Zambézia há notícia documental de um catecismo manuscrito da língua sena, composto em meados do século XVII por frei Francisco Trindade, o Catecismo, ou Confessionario necessario para uzo dos naturaes do Estado de Monomotapa, cujo paradeiro se desconhece;
- É igualmente desconhecido o paradeiro e o autor de uma gramática de língua moçambicana que teria sido publicada em 1680 e reimpressa já no século XX.
Certo falhanço das missões católicas, em virtude de uma tradição
muçulmana já enraizada, e o facto de Moçambique ter sido, durante largos
anos, não mais do que ponto de passagem da carreira da Índia, explicam este
panorama algo desolador, não obstante a riqueza linguística do território». In Maria do Céu Fonseca, Universidasde de Évora,
Historiografia Linguística
Portuguesa. O Processo de Gramaticalização de Línguas extra-europeias, Oceano
Índico, Versão portuguesa
adaptada de um texto que se apresentou no Colóquio Internacional “Écriture et
construction des langues dans le sud-ouest de l’Océan Indien” Faculté des
Lettres et des Sciences Humaines , Université de la Réunion, Revista
de Letras, II, 2005, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro..
Cortesia
da U. de TM e Alto Douro/JDACT