guilhermeoliveira
e jdact
Com
a devida vénia a Guilherme de Oliveira
À
memória da minha querida Alice
«Sempre
me magoou a falta de capacidade para exprimir os meus pensamentos e as minhas
emoções. Não se pode imaginar o desespero de alguém que sente, ri ou chora e
não sabe transmitir aos outros as suas vivências tão vivas e impressionantes
como as experimenta. Ama-se, rejubila-se ou sofre-se e as palavras saem vazias
de amor, de alegria ou de sofrimento; nada do que é essencial no nosso estado
de espírito se revela na sequência e no conteúdo das frases que escrevemos ou
dizemos. O volume, a tensão, o sentido, a cor e a profundidade das emoções não
cabem na linguagem pobre, seca e dura de quem não sabe a expressão da sua
própria vida interior. É uma angústia esta incapacidade de revelar, na sua
medida, os escuros, os claros e os vazios da nossa alma triste, contente ou desconsolada.
Não sei falar da minha Alice, não sei falar do grande amor que lhe tive, nem da
grande saudade que me deixou. Sei dizer, isto sim, que a amei muito, que ela
era toda a minha felicidade, tanto que, depois de a ter, me reconciliei
inteiramente com o mundo e me esqueci dos agravos dolorosos do passado. Sei dizer,
quero-o mesmo dizer, que a admirei muito porque era boa, bela, inteligente e
artista. Finalmente, ainda sei dizer que sofro a sua perda com desespero,
cansaço e descrença. Já não tenho fé, já não tenho esperança. Só não esqueço o
que devo à sua memória e ao filho que deixou.
É
para o nosso filho que, penosamente, escrevo tão pobres palavras que por serem
pobres não são dignas da grandeza da personalidade da Alice. Que me perdoe a sua memória e o nosso filho, mais tarde, a
pouca expressão que soube dar das suas grandes e raras qualidades.
A
minha mulher era, simultaneamente, uma menina linda e boa, uma senhora distinta
e delicada e uma artista inspirada e sensível. Todas as suas atitudes exprimiam
a confluência das ressonâncias espirituais destas formas de ser e de sentir. Não
podia ser menina sem ser senhora e artista, nem senhora sem ser artista e
menina, como não podia ser artista sem ser menina e senhora! Quando a conheci a
recitar o Cântico Negro de José Régio afigurou-se-me, na sua
aparição, ser uma criança arrancada ao seu mundo de bonecas e de quimeras e
empurrada pelos pais para a frente dos convidados para mostrar as suas
habilidades precoces. Comecei por ter pena de ver assim aquela menina tão
linda, tão gentil, metida em trajes de gala, a figurar de senhora, trémula e
perplexa, de olhar atónito e receoso, exposta à incerteza daquele momento e à
compaixão circunstancial dos presentes que a entonteciam com a sua curiosidade
crítica! Mas a sua voz suavemente metálica, serena e rica, os movimentos firmes
e bem coordenados das suas mãos e o garbo da sua figura esbelta e madura
entraram-me na alma e encheram-me os sentidos de beleza e de consolo descansado.
Era já uma menina-mulher a quem apetecia adorar e beijar em pureza e em
felicidade! Depois, na recriação temática e artística do poema, foi-me
aparecendo real, vibrante e dura a figura desesperada, orgulhosa e dominadora
do desiludido e forte lutador que não teme a derrota só porque a sabe superar e
conhece o seu caminho:
Não! Não vou por aí. Só vou por onde
me levam meus próprios passos.
………………………………………..
E
ali fiquei, presos os sentidos e a inteligência aquela desgraça humana que, ora
raivosa, ora desdenhosa, se batia já na fraqueza da desilusão e da descrença,
tendo apenas como armas o seu orgulho e a sua arrogância, e como estímulo o
medo de ser dominado pelas forças do mistério insondável da vida que simultaneamente
repelia e apetecia:
Ah! Que ninguém me dê piedosas intenções
não sei por onde vou
não sei para onde vou
sei que não vou por aí.
A
figura insólita e temível daquele desgraçado que gritava o seu horror à
sujeição, mas que, no íntimo, receava submeter-se, desapareceu… não se sabe se
vencido, se vencedor… De todo aquele espanto, de toda aquela grandeza
dramática, ficou apenas, no próprio lugar, uma figura de menina e de mulher de
sorriso brando e de jeitos amimados como a dizer: estou aqui, não tenham medo, não houve nada, foi só um sonho, uma
tempestade que se desfez e… uma menina que ficou… E era a mesma criança
que se houvera feito senhora para se transfigurar, depois, na presença torturada
e raivosa do poeta, que estava, de novo, na minha frente! Afogueada, receosa,
mas feliz, a menina agradecia com vénias de mimo as calorosas ovações com que
premiavam a sua Arte. Que ser tão estranho era aquele que tinha o dom de ser ao
mesmo tempo criança, senhora e artista?! Como podia acontecer que a menina
receosa, gentil, delicada e frágil pudesse aparecer como senhora e logo, em
seguida, como protagonista inteira de uma luta
dramática travada nas camadas mais diferenciadas da personalidade humana?
Fui
ao seu encontro cheio da avidez do maravilhoso desconhecido». In Guilherme
de Oliveira, Memoriam, Alice Freire Falcão Oliveira, 1921-1947, Tipografia
Atlântida, Coimbra, 1949.
Cortesia
de T.Atlântida/JDACT