Uma espécie em vias de emergência
«(…) Se
compararmos a superfície de Möbius com a consciência, a formiga com um conteúdo
de consciência e a prega como um espaço comum à consciência pré-reflexiva e à
consciência reflexiva, podemos conceber agora como é que a consciência
pré-reflexiva pode pertencer simultaneamente à representação espontânea da
realidade e contudo, fazendo parte do mesmo processo, que esse conteúdo faça
igualmente parte da actividade reflexiva da consciência. Regressemos agora à
problemática central em torno da qual se elaborou esta comunicação. Acabámos de
apresentar um modelo alternativo do funcionamento da consciência em que se
torna possível entender como é que Édipo deu duas respostas diferentes a uma
única situação. De facto, só assim se pode compreender um estado mental em que
a realidade é simultaneamente aceite e rejeitada. Se compararmos o nosso modelo
com o modelo freudiano apercebemo-nos o quanto a introdução do conceito de
inconsciente e de repressão modifica radicalmente a explicação dada acima. No
modelo alternativo não há lugar para a repressão e à organização psicopatológica
aí descrita chamar-se-ia preferencialmente perversão. A psicopatologia tende
actualmente a alargar o conceito de perversão fazendo-o abranger as situações
em que a realidade nem é totalmente aceite nem é completamente rejeitada. Mas
será possível propor que da consciência se pode dizer que ela tem um estatuto
incontornavelmente ambíguo e que o ser
humano é intrinsecamente mentiroso?
Depois modelo da consciência com que o qual nos propusemos explicar o
comportamento de Édipo na famosa peça de Sófocles, procuraremos mostrar no
historial dum nosso cliente como funciona esse modelo alternativo. Quando ele
me procurou exercia uma profissão liberal e tinha um comportamento que
provocava grandes preocupações aos seus familiares, nomeadamente por causa das
ideações suicidárias recorrentes no seu discurso. Explicou-me que havia
consultado um psicoterapeuta que atribuíra as perturbações que o afligiam às
dificuldades nas relações entre os pais e ao falecimento da mãe. Era evidente
que o foco dos seus problemas residia essencialmente nessa perda mas a
abordagem da triangulação não trouxe resultados visíveis. Depois de observarmos
como o trabalho do luto parecia bloqueado, tentámos obstinadamente que
revivesse as emoções que haviam acompanhado a perda da mãe. No regime de uma
sessão por semana levámos cerca de dois meses para nos aproximarmos do que
julgamos ser o ponto nevrálgico dessa indagação. Trata-se do momento em que me
relatou, embora com visível esforço, a seguinte vivência: Na noite em que acompanhei o velório da minha mãe tive durante algum
tempo a certeza de que o seu peito se mexia como se ela estivesse a respirar». In António Fragoso Fernandes, Da repressão
à Perversão, Opúsculo 5, Pequenos textos de filosofia, ciência e
filosofia da ciência, Centro de Filosofia das Ciência da Universidade de
Lisboa, FCT, 2011
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