quinta-feira, 17 de julho de 2014

Aspectos das Relações Diplomáticas Luso-Espanholas. 1814-1821. Castro Brandão. «De imediato, será restaurado, sem restrições, o poder autocrático da realeza bourbónica. Um novo período toma vulto pronto a esmagar quaisquer veleidades liberalizantes. A 4 de Maio de 1814, declara-se a Constituição nula…»

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«Soçobrara o sonho imperial napoleónico. À guerra sucedera a diplomacia, reabilitada da mera expressão de compromissos militares. Abria-se a era dos grandes Congressos, inaugurada no de Viena em 1814. Mal refeita ainda da ocupação francesa, a Península Ibérica procura despertar para um futuro incerto. Aquela mesma Espanha que proclamara a Constituição de Cadiz (1812) acolhe festivamente a reentronização de Fernando VII. Contradição aparente, resultará sobretudo da força de um atavismo, que os ventos da mudança constitucionalista não haviam logrado apagar.
De facto, dois anos apenas não foram suficientes, para alterar mentalidades arreigadas em seculares princípios. É de crer que só a ausência do rei, exilado em França, dera força e oportunidade à proclamação constitucional. O labor das constituintes, embora intenso, revelou-se muito mais teórico do que prático. Durante a sua efémera existência promulgou-se copiosa legislação. Sem embargo, os resultados ficaram muito aquém das expectativas. Concretamente, pouco ou nada se abalara das estruturas políticas e socio-económicas do anterior regime. Não se abolira nenhum convento nem se derrogara qualquer lei feudal, sem que logo se levantassem clamores generalizados. À oposição actuante dos privilegiados, não se viu contrapor a força de uma vontade popular. A massa permanecia inerme e compreensivelmente insensível às promessas de mudança. Reacção lógica, aliás, de quem não vislumbrava benefícios imediatos. Tudo ficara como dantes. A Constituição, só por si, seria incapaz de solucionar os graves condicionalismos existentes. E os problemas subsistiram, muito para além dos generosos projectos gizados em Cadiz.
Herdeiros de uma situação calamitosa, raiando o colapso financeiro nacional, as constituintes não lhe acharam adequada saída. Pelo contrário. A breve trecho reduzem-se a uma minoria inoperante, acossada e receosa. E o entusiasmo reformador inicial, transformar-se-á em cega intolerância, face a quantos não perfilhassem dos seus ideais. Sucintamente, tal é o quadro que servirá de cenário ao regresso triunfante de Fernando VII (o monarca regressa do seu exílio de Valançay a 22 de Março de 1814; sobre a sua entrada triunfal em Espanha veja-se a descrição no Manual de Historia de España, Barcelona, 1959). De imediato, será restaurado, sem restrições, o poder autocrático da realeza bourbónica. Um novo período toma vulto pronto a esmagar quaisquer veleidades liberalizantes. A 4 de Maio de 1814, declara-se a Constituição nula e sem nenhum efeito. O poder central constituinte, reduzido à simples expressão de espectador, não opõe resistência. Como que a censurar a vitória consentida, a governação régia fará alarde do seu ilimitado despotismo. O anterior regime ressurge fortalecido e incondicional. As palavras de ordem passam a ser perseguição e vingança. Olvidam-se as promessas feitas pelo monarca no exílio de Valançay. Multiplicam-se as sentenças condenando à prisão ou ao desterro. O terror reinará para que Fernando VII governe.
Naturalmente, todo o aparelho do Estado torna às mãos dos absolutistas. Os radicais sobraçam os Ministérios mais importantes. E a corte depura-se dos elementos desafectos, em. favor de um grupo cada vez mais restrito e fechado. É a célebre camarilha desfrutando de tal valimento, que até os próprios Ministros se lhe sujeitam. O nepotismo e a intriga pontificam. A influência palaciana de que goza e o ascendente exercido sobre o rei, explicam a agitação constante da época. Tão pronto se concedem honras como se decretam demissões. Em apenas seis anos sucedem-se trinta ministros nas respectivas pastas. Politicamente, assim viverá a Espanha de Fernando VII, até ao movimento liberal de 1 de Janeiro de 1820...
Pelo lado português a situação não deixa transparecer maior optimismo. As invasões francesas marcaram a ferro e fogo os seis anos decorridos entre Junot e Massena. A transferência da família real para o Brasil fora uma decisão oportuna. Evitara-se a provável prisão do príncipe regente. E, porventura, a inevitável abdicação à semelhança do que ocorrera no país vizinho. O expediente debitaria, contudo, os seus respectivos custos. Mudança repentina, colhe de surpresa e afecta profundamente o aparelho político nacional. Desde João V, habituara-se a Nação ao regime paternalista. Estruturalmente, tudo gravitava ao redor da figura do monarca. Na ausência deste, desarticulava-se o sistema acentuando a ineficiência governativa. Ao longo do período macerado pela guerra, pouco se terão sentido os efeitos da acefalia do poder. Porém, provindo a paz, logo provocará um abatimento colectivo que constantemente se manifesta». In Fernando Castro Brandão, Aspectos das Relações Diplomáticas Luso-Espanholas, 1814-1821, separata de A Diplomacia na História de Portugal, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1990.

Cortesia da APdaHistória/JDACT