sábado, 5 de julho de 2014

Crónica de Almançor. Sultão de Marrocos (1578-1603). Dias Farinha. «A conquista, manutenção e desenvolvimento das várias praças encontrava-se relacionada com o tipo de projecto que imperava na vida política portuguesa da época»

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A Época. Os Portugueses em Marrocos no século XVI
«A presença portuguesa em Marrocos durante o século XVI enquadrava-se no movimento expansionista ibérico e europeu e obedecia a várias motivações. No plano militar pretendia assegurar posições estratégicas no estreito de Gibraltar, no mar Mediterrâneo e ao longo da costa ocidental africana. Na perspectiva política reivindicava a posse das praças africanas como esteio da independência do Reino e garantia do equilíbrio das forças peninsulares.

NOTA: As razões para a conquista eram outras, visavam o equilíbrio das forças internacionais. A operação militar é o resultado de uma estratégia [...] tem em vista assegurar para Portugal uma maior área de intervenção, para o equilíbrio peninsular ibérico [...]; in História Diplomática Portuguesa, Lisboa, 1987. A importância da posse das praças magrebinas foi ainda mais acentuada a partir dos finais do século XV. Castela entrou em competição com Portugal pela conquista da África do Norte e o litígio só foi resolvido graças à assinatura dos tratados de Alcáçovas-Toledo (1479-1480), de Tordesilhas (1494) e de Sintra (1509). Nesses acordos foi reconhecido a Portugal o direito de conquista do reino de Fez. Durante o domínio filipino, o monarca ibérico obliterou esses convénios e deu ordem a tropas da Coroa de Castela para ocuparem Larache (1610) e a Mamora (1614). A rivalidade luso-espanhola pela posse dos territórios magrebinos subjaz a alguns dos julgamentos de António Saldanha, pelo que a leitura da Crónica de Almançor exige a consideração desse longo requisitório.

Na dimensão ideológica persistia no projecto de alargar as fronteiras cristãs, continuando a obra da Reconquista. Como razões de carácter económico aduzia a riqueza em cereais, gados e outros produtos das regiões costeiras de Marrocos e o comércio dos artigos fabricados nas cidades do Magrebe que eram trocados em diversos lugares do mundo frequentado pelos portugueses, sobretudo na África Negra. A exploração do ouro do Sudão ocidental, a que as caravelas já tinham acesso pela costa atlântica de África, ficava quase reservada a quem dominasse os portos magrebinos. A orla atlântica de Marrocos não oferecia ancoradouros fáceis à navegação. A costa é pouco recortada e sujeita a temporais frequentes, os estuários dos numerosos rios que correm das altas e pluviosas montanhas daquele país são pouco profundos, assoreados, sujeitos a variações de caudal, causadas quer pela estiagem, quer pelas chuvas prolongadas. Acrescente-se a circunstância de as marés poderem enganar os navegadores quanto aos verdadeiros fundos da costa e a existência de recifes em alguns dos pontos passíveis de aproveitamento portuário.
A região norte, contígua ao estreito de Gibraltar, é extremamente montanhosa. A passagem por terra de Ceuta a Tânger, apesar da curta distância que as separa, é empresa que oferece sérias dificuldades e só recentemente foi aberta uma sinuosa e perigosa estrada. Os numerosos rios que correm para a fachada atlântica de Marrocos compartimentam o país em províncias e dificultam as comunicações no sentido dos meridianos, sobretudo na época em que os cursos de água têm grandes caudais. Vários factores levaram a que o poder gravitasse em torno de duas cidades: Fez, situada à latitude de Rabat - Salé, e Marraquexe a sul do paralelo de Safim. A autoridade política foi frequentemente precária no reino magrebino, devido à autonomia das várias tribos e à carência de disposições sucessórias claras e de regras que definissem a legitimidade do exercício do poder político. A luta contra a presença estrangeira e uma resposta adequada ao desafio daqueles que pretendiam o acesso ao poder, em especial os morábitos e as confrarias, impunham a necessidade de manter um exército permanente e de promover campanhas frequentes contra o inimigo externo e contra as revoltas e conjuras internas.
A actuação portuguesa no Magrebe foi condicionada por aqueles factores, pela existência de cidades nos lugares considerados relevantes e, ainda, pela distância aos portos europeus. A conquista, manutenção e desenvolvimento das várias praças encontrava-se relacionada com o tipo de projecto que imperava na vida política portuguesa da época. A história da Expansão é indissociável das vicissitudes do Reino porque é um seu corolário, embora, ao mesmo tempo, tivesse influência determinante na sua própria evolução. A situação de Ceuta, debruçada sobre o estreito de Gibraltar e rodeada de montanhas, reforça a insularidade do local e a sua posição estratégica como chave do Mediterrâneo. O fracasso do exército português na empresa de Tânger, em 1437, e a não utilização de Ceuta como base de invasão de Marrocos comprovam esse carácter. A presença cristã naquele país necessitava de nova base de operações mais largamente aberta para o interior. Quando foi escolhida a cidade de Tânger, como alvo de uma empresa bélica lusitana, foi valorizada a existência de uma baía e a comunicação com o sul magrebino por uma larga faixa de terras baixas ao longo do Atlântico. Apesar dessa situação, Tânger ficava longe da estrada natural para Fez e os movimentos dos portugueses podiam ser observados com facilidade. A conquista de Arzila, situada mais a sul, embora desprovida de porto, permitia o domínio das planícies que se estendiam na direcção de Alcácer Quibir e do interior de Marrocos». In António Dias Farinha, Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1997, ISBN 972-672-864-9.

Cortesia de IICT/JDACT