Uma espécie em vias de emergência
«(…) Não
nos custa a admitir que dada a fadiga natural em que se achava ,a confissão do
nosso cliente denuncie uma componente alucinatória. Mas o mais característico
do relato era precisamente a preocupação do relator com a sua própria sanidade
mental: eu não sou maluco, eu sabia
perfeitamente que a minha mãe estava morta; ela estava dentro dum caixão, as
pessoas estavam ali, ela ia ser enterrada no dia seguinte. Mas eu tive a certeza absoluta que ela respirava.
Se recordarmos o que se disse acima no contexto da descrição do que denominámos
o modelo alternativo somos levados a pensar que o relato do nosso cliente se
enquadra sem dificuldades nesse modelo da consciência. Façamos uma breve pausa
para nos interrogarmos quanto à possibilidade de ter surgido na história da
psicanálise algum segmento em que se tenha feito referência a algo que se
assemelhe ao modelo alternativo aqui referido. Em 1927 Freud publicou um artigo intitulado Fetishism, onde se ocupou do que
denominou clivagem psíquica. Em 1938, meses antes da sua morte, Freud
voltou a mencionar a clivagem psíquica em A
clivagem do eu no processo de defesa, e também no Resumo da Psicanálise. Mas
que entendia ele por clivagem psíquica? A teoria desenvolvida excede a
temática de que se ocupa esta intervenção mas as conclusões de Freud devem ser
mencionadas aqui. No seu artigo sobre a clivagem do eu já mencionado ele
pergunta-se: estarei a falar de algo
que já conheço de há muito ou de algo de novo? E responde deste modo à
sua dúvida. Não se trata duma clivagem entre o inconsciente e o eu, tal como
acontece com a repressão mas sim de algo que se passa no eu e onde o
inconsciente não está envolvido. São dois processos distintos que se passam
no eu, dos quais um deles está em contacto com a realidade e o outro coloca
fora de jogo a realidade para pôr em seu lugar uma construção cuja origem
resulta unicamente da actividade do próprio sujeito. É nisso que consiste a
clivagem. Estes esclarecimentos, dados por Freud, já são suficientes para
entendermos a direcção que a teoria psicanalítica teria podido seguir depois da
viragem. Façamos agora um breve resumo do que se tem vindo a dizer.
Neste
momento já é perceptível o quanto diferem os modelos psicanalítico e
existencial do psiquismo humano e as respectivas consequências da sua aplicação
terapêutica nas perturbações da personalidade. Na psicanálise o sujeito humano
é entendido como se para ele o sentido da vida residisse fundamentalmente na
obtenção do prazer. Num organismo submetido à excitação o prazer resume-se ao
regresso a uma carga zero de energia. É a chamada hipótese económica em Freud e ela constitui o verdadeiro motor da
maquinaria que põe em movimento a maquinaria freudiana. Freud explica tanto o
desenvolvimento normal como a patologia por meio de permutações e
transformações energéticas, conscientes e inconscientes de energia. O
significado do funcionamento do sistema nervoso deve pois ser encontrado, em
última instância, nas redes neuronais. Mas os neurónios são substâncias
coloidais inteiramente destituídas da capacidade de levar ao conhecimento do
que existe, tal como a consciência é capaz de o fazer. O materialismo freudiano
reduz pois o sentido humano das coisas aos instintos psicofisiológicos. Mas os
iniciadores da abordagem existencial da condição humana substituem as forças
neurofisiológicas pela experiencia existencial que é inerente à própria
experiência que advém dessa condição. Em suma, as bases da metateoria dos
terapeutas existenciais consiste na elaboração duma grelha susceptível de
encaixar a experiência do sujeito em observação nas categorias existenciais que
o limitam. Pergunta-se então qual será
a forma mais eficaz de modificar radicalmente a maneira de alguém estar no
mundo? Será pela interpretação do que acontece ao nível dos impulsos
instintivos e das formações
inconscientes que deles derivam? Ou deveremos antes utilizar um acesso
que através da compreensão das condições existenciais que acompanham a inserção
dum sujeito no mundo material e social nos colocam
perante a necessidade irrevogável dessa modificação? Mas é tempo de
terminar dado que esta última questão merece pela vastidão do tema, ser
retomada noutra intervenção». In António Fragoso Fernandes, Da repressão à
Perversão, Opúsculo 5, Pequenos textos de filosofia, ciência e
filosofia da ciência, Centro de Filosofia das Ciência da Universidade de
Lisboa, FCT, 2011
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