quinta-feira, 31 de julho de 2014

Sátira no 31. Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «El-Rei borrou-se, rebentou de varizes, tremeu de medo pânico. E mal chegou aos seus aposentos, correu ao cofre dos cilícios, fez desaparecer seu frasquinho de arsénico entre a colecção de venenos que tinha. Porque o fez a ninguém disse»

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«(…) Por entre alas de vultos negros, cada qual com sua tocha tremeluzente, o cadáver tremebundo. O ataúde segue pela nave sonora, detém-se na charola agora preparada com grandes panejamentos negros. Sobre o caixão, o escudo, o elmo e o pendão do próprio defunto. Um bispo faz elogio, exagera como manda a praxe, não conta a verdade deste rei feito de egoísmo e avareza, mas refere qualidades fingidas de generosas caridades impensáveis. Chamaram El-Rei adiante para que visse. El-Rei olhou. E borrou-se de pavor tão pânico e tanto se amedrontou que ia morrendo por seu turno. Foi nesse dia que se lhe arrebentaram ainda mais as pernas com varizes. É que viu: o tal João perdera as carnes sem se descompor, seco, enxuto, a epiderme perfeita, a barba branca e os cabelos brancos tão em seu lugar e à luz tremenda, mortiça e dançante de três lâmpadas de prata que o alumiam, parece respirar mansamente, um sono que adia justiças...
No caixão, o tal João dormia incorrupto. E só havia duas possibilidades: uma, a de ser santo, coisa que a ninguém parecia, pois nunca o fora, apunhalara até seu primo, mandara degolar a outro primo, e distribuíra a eito muito veneno para erradicar inimigos, e assim sendo, santo não seria. A outra possibilidade era que algum veneno entrara nele, para o despachar. E todos sabiam que o sintoma da intoxicação pelo arsénico era por vezes o mesmo: a carne secava, a pele engelhava, mas o corpo ficava depois da morte como que a denunciar...
El-Rei borrou-se, rebentou de varizes, tremeu de medo pânico. E mal chegou aos seus aposentos, correu ao cofre dos cilícios, fez desaparecer seu frasquinho de arsénico entre a colecção de venenos que tinha. Porque o fez a ninguém disse.

A bruxa entrou no palácio vestida de freira, modo engenhoso que Gil encontrou para a desaperceber a olhos indiscretos. Mais freira menos freira num mar de hábitos, ninguém suspeitaria... Não foi fácil convencê-la todavia a, salvo seja!, tomar o dito hábito. Alegava que a sua reputação sairia comprometida de tal aventura e que as raivas de padrecas e sorores se lhe colariam à pele para todo o sempre. No entanto, a heresia, múltipla heresia, acabou por cometer-se e nem o beneplácito régio salvaria a pobre se alguém da igreja assim a topasse. Tremia de medo dentro da fatiota e diante do palácio até soltou flatulências medrosas, tal era o pavor que a percorria.
Era uma mulher roliça, muito providinha de carnes até, nem tão velha que os cabelos já tivesse descoloridos, eram encaracolados e loiros naturalmente, vingando nela um olho azul perspicaz, combinação que fazia crer que algum labrego de paragens nórdicas se tinha posto em sua avó ou mãe, deixando-lhe tendências de fora e dotes de bruxaria no sangue misturado, nem tão nova que se julgasse moça, mas ainda muito própria de fazer pensar e querer». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

Cortesia de CLeitores/JDACT