Explicação necessária
«Numa reunião de delegados
republicanos, efectuada em Lisboa, para tomarem conhecimento do programa
apresentado pelo candidato à presidência da República, general Norton de Matos,
e assentar na orientação a dar à campanha eleitoral (afirmara aquele advogado
portuense que, numa igreja do Norte, um sacerdote iniciara a campanha
eleitoral, dizendo aos seus paroquianos: Votem todos com o nosso pároco), Santos Silva, que fizera parte da
mesa e conversava com o candidato, chamou-me para me dizer: - Lembrámos a
conveniência de você aparecer na imprensa, escrevendo coisas no género que lhe
é familiar. Já tem um belo tema, a pregação do sacerdote minhoto, a que se
referiu António de Macedo. Aleguei razões de escusa, às quais poderia ter juntado
o facto de estar ainda quente o lugar que durante um mês ocupara no Aljube.
Além disso os jornais já por várias vezes tinham aludido à minha provecta idade. Deveriam chamar os
novos, alguns bem preparados e aguerridos. E fiquei nisto. Mas, no dia
seguinte, quis o destino que eu subisse à redacção da República, onde encontrei
diversos publicistas, entre os quais perorava Rocha Martins, que, mal me viu,
exclamou: - Você também deve aparecer... A hora exige-o. Escreva, por exemplo,
uma carta a um pároco de aldeia, naquele seu estilo, que tanta agrada às
massas. - Homem, deixe-me em paz,respondi-lhe. E contei o diálogo havido na
reunião dos delegados provinciais.
Mas do grupo outros me invectivaram
e com argumentos de tal peso que eu tive de vergar: - Pois bem, Carvalhão
Duarte! Amanhã aqui terá a prosa que me impõe. Foi assim que apareceram no dia
8 de Janeiro de 1949, as Palavras
calmas a um provinciano inquieto. O incêndio que em seguida atearam
vê-lo-ão adiante, em alterosas chamas, que dir-se-ia anunciarem o dies
irae da justiça divina, tão impetuosamente galgou e abrasou, em poucos
dias, a pobre terra portuguesa, de ordinária resignada e apática. E por culpa de quem, apavorada gente?
Para que me acordaram? E,
acordado, para que me empurraram?
Ignoravam, porventura, que não tenho a
fala para ocultar os pensamentos? Ou julgariam que a tal provecta idade me teria levado a
desertar do campo onde, durante meio século, me bati, enfrentando a reacção,
quer me surgisse de coroa, quer de mitra ou de tiara, a tolher-me os passos ou
a desviar a luz que alegra os corações
e fortalece a alma?
Pois aí têm. E agora extingam, se
virem que há vantagem, o incêndio a que não quiseram acudir, quando era ainda
um pequeno fogacho, que qualquer abafaria com um simples ramo verde, ou com a
sola do sapato. Por mim, não tentei o menor gesto para o dominar, porque achei
bem que se lançasse e longamente ardesse, a ver se aquecia tanto o corpo
arrefecido, iluminando ao mesmo tempo a legião de consciências e vontades que
jazem amodorradas no indiferentismo, na miséria ou nas desilusões que os anos acarretam.
Só o tempo nos dirá se realmente iluminou e pôs de pé esses amodorrados, ou se
a labareda foi tão forte, que tudo haja esterilizado e reduzido a cinzas. Alguém
me diz que um livro da natureza deste, posto a circular em Portugal, põe em
risco, não apenas a liberdade do autor, mas ainda a sua própria vida. Embora!
Morra ele, mas vivam os tristes que salpicam de lágrimas e sangue os caminhos
que levam aos santuários donde regressam mais pobres e mais desventurados! Sim. Morra ele, mas vivam esses e, com
eles, todos os que têm fome e sede de justiça e morra como deve morrer: no
campo donde se volta livre, ou se não volta mais!
Casus belli. Palavras calmas a um
provinciano inquieto
Caro Amigo:
Diz você na sua carta: O pároco da minha freguesia iniciou há dias
a propaganda eleitoral com esta exortação: Votai todos com o vosso
pároco! E comenta: É necessário
opor-lhe, desde já, uma campanha tal que o faça recolher à sua função de pastor
de almas. Porque o padre, ou representa Cristo, e nesse caso só lhe compete
pregar o Amor e a Concórdia, ou é agente eleiçoeiro, e então forçoso se torna
irmos ao seu encontro, a fim de o conduzirmos ao caminho de que se haja
desviado. Não sei se alguém respondeu já à sua inquietação. Apesar disso,
também quero acudir, na esperança de que as minhas palavras possam atenuar o
alvoroço que a sua carta nos revela. Não é preciso ser-se muito lido, nem ter
largo convívio com pessoas de igreja, para poder afirmar que, embora o
sacerdote em causa haja lançado esse convite às ovelhas que pastoreia, não
acredito que o seu exemplo seja contagioso a ponto de constituir perigo para a
vitória do candidato, que o meu amigo tão ardorosamente se propõe defender.
Sucederá isso numa ou noutra
freguesia minhota, onde a ignorância e a miséria enchem a igreja até à porta;
mas, nas outras, como no resto do país, a prudência e o bom senso do clero
evitarão que as ovelhas que pastoreia enveredem por tal caminho, onde, por
vezes, há silveirais e pedregulhos de pôr medo. Demais sabe ele que o eleitor
dos nossos dias há muito se encontra suficientemente esclarecido para poder
votar, não por sugestões, venham de onde vierem, mas segundo o seu critério e conveniências
sociais, que, quase sempre, condicionam também as económicas. Por muito que se
tenha feito para limitar a propaganda de pessoas e de credos políticos, pouca
gente haverá que não esteja elucidada acerca do momento que passa e, portanto,
dos interesses do país e posição dos homens que se propõem governá-lo. Não
pode, pois, o clero constituir excepção, sobretudo os velhos sacerdotes que,
pelo muito que já viram e ouviram, e ainda pela experiência de passados
embates, perfeitamente sabem que o povo deixou de ser criança, tendo atingido
aquela maioridade que lhe trouxe a noção do dever e da responsabilidade, tanto
dos actos que pratica, como dos que, por incúria ou negligência, deixa de
praticar. Sabe, pois, o clero que as qualidades morais, a piedade, a tolerância
e a bondade do povo são tradicionais; mas sabe igualmente que, quando alguém
abusou desses dons naturais, raramente o povo deixou de responder com aquela
coragem e civismo que a história nacional regista a cada passo». In
Tomás da Fonseca, Na Cova dos Leões, Paraíso
do Livro, 1958.
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