Casus belli. Palavras calmas a um
provinciano inquieto
«(…) O tempo ensinou-o a ser cauto.
E essas lições, aliadas às que, por vezes, lhe chegam dos superiores
hierárquicos, têm-no tornado mestre na arte de prever e saber conciliar. Pois
não guarda ele, entre as pastorais diocesanas, a prudente mensagem que, em 29
de Março de 1934, o representante da
Santa Sé junto do episcopado português lhe transmitiu, primeiro, através da
Emissora Nacional, e em seguida, por
toda a denominada boa imprensa? Recomendava, com efeito, o patriarca
Cerejeira, já nessa altura assistente ao Sólio Pontifício: Todo o esteio duma coação puramente policial não fará mais que manter
de pé um cadáver. Foi conciso e terminante. E o clero português registou o
aviso, e, assim prevenido, mantém-se nas paróquias à escuta e de olhos bem
abertos sobre a passagem do Evangelho que aconselha prudência, naquela fórmula
tanta vez recordada nas encíclicas e rescritos pontifícios, que em seguida se
repetem dos púlpitos e de boca em boca são levadas a
crentes e descrentes: A Deus o que é de Deus e a César o que a César
pertence. Ora, o pároco da sua freguesia sabe perfeitamente que o César de
que fala o Evangelho é o Mundo, que Deus, no acto da criação, separou logo do
Céu. Esclarecido como está, também esse padre saberá separar os dois poderes,
considerando, sobretudo, aqueles que os teólogos de todas as idades e nações
recomendaram sempre, o de Deus. E como Deus é puro espírito, o seu pároco, um
momento esquecido das doutrinas do divino Mestre, há-de voltar, se é que já não
voltou, à lei de Deus.
E tão grande a confiança que nele
ponho, que se me não dava de apostar em como, embora não vote no nosso
candidato, a ninguém ousará recomendar o contrário. E se não experimente.
Procure-o no tribunal da penitência, onde não recusará ouvi-lo, e invocando
escrúpulos de consciência, formule-lhe o quesito: - Vim aqui, meu padre, porque
desejo não errar, votando em cidadão menos digno. Qual é, pois, o nome da pessoa em que vota? Creio que a
minha fé me não ilude, e por isso apostaria novamente em como a fala dele não
irá fora disto: O meu candidato é Deus, para o espiritual, mas como estou
ligado ao mundo pelo rebanho que o mesmo Deus me confiou, votarei também no
outro, que, embora mortal e pecador, reunirá, decerto, virtudes morais e
cívicas em grau suficiente para bem conduzir a nau do Estado. Portanto, indague
como eu, e vote conforme a sua consciência.
Noutra carta apontarei as razões
que tenho para afirmar que o clero português votará largamente no candidato
nacional, ou seja, o da Oposição.
Caro Amigo:
Antes de mais nada, desejo
recordar, para que me não julguem incoerente com um passado que vem já de muito
longo, as seguintes palavras que pronunciei no Senado, em sessão de 29 de Março
de 1917, acerca do regresso das
congregações religiosas a Portugal, que lhes ficou devendo, além de séculos de
miséria e opressão, o grande atraso cultural que a história registou em páginas
que não esquecem mais: Escreveu Alexandre de Gusmão, Ministro do rei João V: Quanto
se não faz odiosa a perniciosa conduta dos Jesuítas, pretendendo com as suas
máximas arruinar três reinos os mais poderosos? (Colecção de Vários Escritos).
Na mesma ordem de ideias, o cardeal Saraiva (fr. Francisco de S. Luís), que
morreu cardeal patriarca de Lisboa, deixou-nos, entre os seus numerosos
escritos, a famosa Memória sobre o estado das leiras em Portugal na primeira
metade do século XVIII, de que registaremos apenas uma simples amostra: Ninguém hoje ignora a triste decadência e
abatimento a que chegou a literatura portuguesa nos fins do século XVI e
por todo o XVII. Não
veja o Senado, nas palavras que vou pronunciar, qualquer fórmula de ataque ao
sentimento religioso, ao ideal místico daqueles que sinceramente crêem e
confiam na intervenção de um Deus, que é, para muita gente simples, essa
esperança falaz que os norteia na vida e os embala na morte… Não venho ferir
crenças, mas atacar embustes... Falo daqueles que têm Deus como instrumento do
seu ódio; que, aproveitando a religião como gazua, exercem o sacerdócio, não
para salvar as almas, mas forçarem a espórtula, sua ambição suprema... As
palavras veementes que da minha boca se soltarem, essas vão para os
caixeiros-viajantes do dogma cristão, os arlequins que andam de templo em
templo.
Assim, desde o ano de 1620, em que fechamos com, o nome do
grande frei Luís de Sousa a lista dos nossos bons escritores, começamos a
observar entre nós, em todos os ramos de literatura e erudição, a mais rápida e
sensível decadência, mostrando-se nos engenhos portugueses tão incrível e
prodigiosa transformação, que parece indicar um geral transtorno em toda a sua
constituição física, moral e política. Não foi esta notável mudança obra de um
só momento ou de uma só causa. Um fatal concurso de circunstâncias a preparou e
chegou a consumar pelo decurso de muito mais de um século... Podemos, sem
receio de errar, atribuir uma das primeiras e não menos principais causas
daquela decadência ao inconsiderado arbítrio de se confiar a uma só corporação
o importante cargo de educação e ensino da mocidade, à introdução e
estabelecimento dos jesuítas em Portugal. Esta corporação ambiciosa e astuta,
constante nos seus planos e uniforme em suas operações, serviu-se oportunamente
de todos os meios que as circunstâncias lhe ofereciam para assenhorear-se da
educação e ensino da mocidade, que é a primeira base e fundamento dos
progressos nacionais (Obras Completas, Vol. X) vendendo a peso de ouro o
corpo do seu Deus, ou trespassando a retalho a túnica que o cobriu». In
Tomás da Fonseca, Na Cova dos Leões, Paraíso
do Livro, 1958.
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