quinta-feira, 3 de julho de 2014

Na Cova dos Leões. Tomás da Fonseca. «… desde o ano de 1620, em que fechamos com, o nome do grande frei Luís de Sousa a lista dos nossos bons escritores, começamos a observar entre nós, em todos os ramos de literatura e erudição, a mais rápida e sensível decadência, mostrando-se nos engenhos portugueses…»

Cortesia de wikipedia

Casus belli. Palavras calmas a um provinciano inquieto
«(…) O tempo ensinou-o a ser cauto. E essas lições, aliadas às que, por vezes, lhe chegam dos superiores hierárquicos, têm-no tornado mestre na arte de prever e saber conciliar. Pois não guarda ele, entre as pastorais diocesanas, a prudente mensagem que, em 29 de Março de 1934, o representante da Santa Sé junto do episcopado português lhe transmitiu, primeiro, através da Emissora Nacional, e em seguida, por toda a denominada boa imprensa? Recomendava, com efeito, o patriarca Cerejeira, já nessa altura assistente ao Sólio Pontifício: Todo o esteio duma coação puramente policial não fará mais que manter de pé um cadáver. Foi conciso e terminante. E o clero português registou o aviso, e, assim prevenido, mantém-se nas paróquias à escuta e de olhos bem abertos sobre a passagem do Evangelho que aconselha prudência, naquela fórmula tanta vez recordada nas encíclicas e rescritos pontifícios, que em seguida se repetem dos púlpitos e de boca em boca são levadas a crentes e descrentes: A Deus o que é de Deus e a César o que a César pertence. Ora, o pároco da sua freguesia sabe perfeitamente que o César de que fala o Evangelho é o Mundo, que Deus, no acto da criação, separou logo do Céu. Esclarecido como está, também esse padre saberá separar os dois poderes, considerando, sobretudo, aqueles que os teólogos de todas as idades e nações recomendaram sempre, o de Deus. E como Deus é puro espírito, o seu pároco, um momento esquecido das doutrinas do divino Mestre, há-de voltar, se é que já não voltou, à lei de Deus.
E tão grande a confiança que nele ponho, que se me não dava de apostar em como, embora não vote no nosso candidato, a ninguém ousará recomendar o contrário. E se não experimente. Procure-o no tribunal da penitência, onde não recusará ouvi-lo, e invocando escrúpulos de consciência, formule-lhe o quesito: - Vim aqui, meu padre, porque desejo não errar, votando em cidadão menos digno. Qual é, pois, o nome da pessoa em que vota? Creio que a minha fé me não ilude, e por isso apostaria novamente em como a fala dele não irá fora disto: O meu candidato é Deus, para o espiritual, mas como estou ligado ao mundo pelo rebanho que o mesmo Deus me confiou, votarei também no outro, que, embora mortal e pecador, reunirá, decerto, virtudes morais e cívicas em grau suficiente para bem conduzir a nau do Estado. Portanto, indague como eu, e vote conforme a sua consciência.
Noutra carta apontarei as razões que tenho para afirmar que o clero português votará largamente no candidato nacional, ou seja, o da Oposição.

Caro Amigo:
Antes de mais nada, desejo recordar, para que me não julguem incoerente com um passado que vem já de muito longo, as seguintes palavras que pronunciei no Senado, em sessão de 29 de Março de 1917, acerca do regresso das congregações religiosas a Portugal, que lhes ficou devendo, além de séculos de miséria e opressão, o grande atraso cultural que a história registou em páginas que não esquecem mais: Escreveu Alexandre de Gusmão, Ministro do rei João V: Quanto se não faz odiosa a perniciosa conduta dos Jesuítas, pretendendo com as suas máximas arruinar três reinos os mais poderosos? (Colecção de Vários Escritos). Na mesma ordem de ideias, o cardeal Saraiva (fr. Francisco de S. Luís), que morreu cardeal patriarca de Lisboa, deixou-nos, entre os seus numerosos escritos, a famosa Memória sobre o estado das leiras em Portugal na primeira metade do século XVIII, de que registaremos apenas uma simples amostra: Ninguém hoje ignora a triste decadência e abatimento a que chegou a literatura portuguesa nos fins do século XVI e por todo o XVII. Não veja o Senado, nas palavras que vou pronunciar, qualquer fórmula de ataque ao sentimento religioso, ao ideal místico daqueles que sinceramente crêem e confiam na intervenção de um Deus, que é, para muita gente simples, essa esperança falaz que os norteia na vida e os embala na morte… Não venho ferir crenças, mas atacar embustes... Falo daqueles que têm Deus como instrumento do seu ódio; que, aproveitando a religião como gazua, exercem o sacerdócio, não para salvar as almas, mas forçarem a espórtula, sua ambição suprema... As palavras veementes que da minha boca se soltarem, essas vão para os caixeiros-viajantes do dogma cristão, os arlequins que andam de templo em templo.
Assim, desde o ano de 1620, em que fechamos com, o nome do grande frei Luís de Sousa a lista dos nossos bons escritores, começamos a observar entre nós, em todos os ramos de literatura e erudição, a mais rápida e sensível decadência, mostrando-se nos engenhos portugueses tão incrível e prodigiosa transformação, que parece indicar um geral transtorno em toda a sua constituição física, moral e política. Não foi esta notável mudança obra de um só momento ou de uma só causa. Um fatal concurso de circunstâncias a preparou e chegou a consumar pelo decurso de muito mais de um século... Podemos, sem receio de errar, atribuir uma das primeiras e não menos principais causas daquela decadência ao inconsiderado arbítrio de se confiar a uma só corporação o importante cargo de educação e ensino da mocidade, à introdução e estabelecimento dos jesuítas em Portugal. Esta corporação ambiciosa e astuta, constante nos seus planos e uniforme em suas operações, serviu-se oportunamente de todos os meios que as circunstâncias lhe ofereciam para assenhorear-se da educação e ensino da mocidade, que é a primeira base e fundamento dos progressos nacionais (Obras Completas, Vol. X) vendendo a peso de ouro o corpo do seu Deus, ou trespassando a retalho a túnica que o cobriu». In Tomás da Fonseca, Na Cova dos Leões, Paraíso do Livro, 1958.

Cortesia de PdoLivro/JDACT