Sobre
a lenda da Arrábida
«(…)
Quando, cerca de meio século mais tarde, em 1638, frei António da Purificação relatou a história, dando a
conhecer o mais antigo documento que refere Hildebrando, apresentou assim
a personagem: tendo a embarcação de um mercador inglês que vinha para Lisboa
sido acometida por tempestade, entre a tripulação … vinha um religioso da nossa Ordem Eremítica chamado Haildebran,
que devia vir por capelão da nau ou de um fidalgo que ali vinha por nome
D.Bartolomeu. Trazia este religioso consigo uma devota imagem da Mãe de Deus
para socorro das suas necessidades. Depois, o cronista acompanha a história
já contada por Gonzaga: quando o religioso foi orar junto da imagem, esta tinha
desaparecido e o barco orientou-se para porto seguro por uma luz que, no dia
seguinte, Hildebrando localizou como originária do sítio onde encontrou
a sua imagem e onde, posteriormente, foi erigida uma ermida.
Por
1721, mais duas versões surgiram:
uma, apresentada por frei Agostinho de Santa Maria (1642-1728), no seu Santuário Mariano, réplica do que
narrou frei António da Purificação, seu antecessor na ordem agostinha; outra,
do franciscano frei António da Piedade, na Crónica
da Província da Arrábida, que refere que o navio em apuros foi
transportado a um sítio chamado Alportuche, próximo da barra de Setúbal.
Segundo este último cronista, depois do encontro da tripulação com a imagem,
foi reconhecido que a Mãe de Deus tinha
escolhido aquele lugar para sua habitação. Por este motivo, Haildebrant distribuiu
pela sua tripulação todas as mercadorias que trazia para seu negócio, reservando
para si algum dinheiro com o qual e no mesmo sítio onde foi encontrada a
imagem, mandou edificar tanto uma ermida chamada da Memória, onde colocou a dita imagem, como junto à mesma ermida,
uma pequena casa, em que permaneceu o resto da sua vida em hábito de ermitão,
guardando suma pobreza e oração, servindo a Senhora com todo o desvelo e tratando
da dita ermida com sumo esmero e asseio. A Ermida da Memória localiza-se
no designado Convento Velho.
A
Lenda Romanceada
A
pedido dos festeiros do Círio de Setúbal, em 1896, Joaquim Rasteiro redigiu a Lenda da Arrábida, não se distanciando do essencial do que a
tradição tinha prolongado, mas pincelando a tempestade com cores românticas e
tumultuosas. Posteriormente, foi a vez de Arronches Junqueiro utilizar o
pretexto da lenda da Arrábida para um dos seus poemas, em cerca de duas
dezenas de estrofes, respeitando a tradição popular, mas também com o recurso a
uma visão romântica da tempestade. Em 1988,
o azeitonense Carlos Alberto Ferreira Júnior publicou o livro Lenda
da Arrábida, em versão romanceada, aproveitando para ligar os nomes de
algumas das personagens a alguns locais da Arrábida.
Nesta leitura, aconteceu o naufrágio e o primeiro sobrevivente a pôr pé em
terra foi o gajeiro, que se viu sobre as areias agarrado à imagem da Virgem.
Cansado e acreditando que todos os companheiros tinham morrido, subiu a serra e
depositou a imagem em lugar propício. Sentindo a solidão, desalentado,
embrenhou-se na mata e, num lugar
solitário, ficou para sempre guardada a história fantástica deste homem. O
sítio passou a ser a Mata do Solitário.
No entanto, houve outros sobreviventes, entre os quais Hildebrando e Abraão,
estando mesmo a imaginar-se que este último, ao ter construído uma cruz que
ergueu no monte, deu origem à designação de Monte Abraão. Apesar de
Carlos Alberto registar, na introdução ao livro, que jamais podia esquecer a alta figura do velho couteiro da Arrábida
a contar com voz pousada aos peregrinos a trágica odisseia de Hildebrando,
o certo é que este, tal como os outros autores, deram à lenda as cores de que
mais gostaram. Ou, como deixou registado o pároco azeitonense Manuel Frango
Sousa, puseram na lenda os seus
sentimentos e o que gostariam que tivesse acontecido se tivessem sido actores
desse acontecimento.
O
Poema de Sebastião da Gama
O
poema Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, de Sebastião da Gama, que agora se publica, constitui uma das peças
do seu espólio até aqui inédita. Manuscrito datado de 9 de Janeiro de 1942, tem o número 183 no conjunto
de poemas sob o título de Saudosas Recordações
que o poeta coligiu. Contém dedicatória a Eugénia Rodrigues, cunhada, e
é assinado por Tarro, o
pseudónimo que utilizou em poemas para amigos, mas que nunca divulgou em
publicação. O texto conta a história do naufrágio de Hildebrando e do
aparecimento da imagem de Nossa Senhora pela voz de um narrador que promete
relatar o sucedido, sem um ponto lhe
aumentar, o que parece ser contraditório quando se trata de uma
lenda... Mas o poeta e narrador sente-se desde início fascinado pela beleza da
história e vai avançando na acção, ao mesmo tempo que se deixa inundar pelo
quadro do temporal, com chamadas de atenção para o leitor, num quase diálogo,
para os momentos mais mágicos ou mais trágicos que tecem a narrativa. O ritmo
do poema acelera quando passa pelos momentos alusivos à Natureza da mesma
maneira que surpreende quando evoca o espanto, o pasmo, dos marujos, que o
leitor é convocado a sentir. Poema de fé é este que Sebastião da Gama compôs. No final, o homem surge repleto de uma paz
interior, só possível porque nunca lhe faltou a confiança num Deus próximo». In João
Reis Ribeiro
In
Sebastião da Gama, Lenda de Nª. Srª. da Arrábida, Associação Cultural Sebastião
da Arrábida, nos 90 anos de Sebastião da Gama, 2014.
Cortesia
da ACSdaGama/JDACT