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Ao lado de um esforço de descrição de tipo global da Península, em que predomina
uma tradição medieval e/ou humanista, surgem obras que têm como objectivo
declarado uma apresentação e uma análise do território nacional, regional ou
até local elaboradas em moldes mais concretos e, consequentemente, menos
condicionadas pela retórica presente nos tratados de cunho tradicional. Os
exemplos são numerosos e portanto, limitar-nos-emos a recordar só alguns dos
mais significativos: o Tratado sobre a
província d’antre Douro e Minho, do Mestre António, a Geographia d’antre Douro e Minho e Trás-os-Montes,
de João de Barros, o Sumário em que brevemente
se contem algumas couses (assim eclesiasticas como seculares) que há na cidade
de Lisboa, de Cristóvão Rodrigues Oliveira, o Tratado da magestade e grandeza e abastança da cidade de Lisboa,
de João Brandão, a História e
antiguidade da cidade de Évora, de André de Resende ou a Urbis Olisiponis descriptio de
Damião de Góis.
Além
da ordem cronológica, não é casual o facto que citamos como último exemplo
exactamente a Urbis Olisiponis
descriptio de Damião de Gois já que esta obra
assume no contexto que nos interessa um significado privilegiado, como aliás
salientou Serrão:
- AUrbis Olisiponis descriptio pode considerar-se um grande festival de erudição antiga e de história portuguesa. Citam-se Plínio, Xenofonte, Cornélio Nepos, Pomponio Mela, entre outros, ao lado dos lusitanos Santo António, André de Resende, Fernando Álvares e Brás Albuquerque. Para fundar a origem do topónimo Olisipo ou Ullissea, o autor invoca os nomes de Ptolomeu, Terêncio, Estrabão e Justino e discute as respectivas teses. Em todo o opúsculo não se vislumbra uma ordem temática, misturando-se a história, a geografia, a religião, as tradições e os dados concretos numa colorida simbiose de que a cidade emerge, tanto nas raízes do seu passado como na sua integração, desde o século XII, no corpo nacional português. O opúsculo é, na verdade, uma fonte histórica, mas com o devido respeito também uma peça literária.
O mesmo
ilustre investigador vincava também o facto que este texto de Damião
de Góis é uma obra eminentemente literária,
nos moldes da evocação de certas terras e lugares, como a concebiam os
humanistas ao elevar as raízes longínquas e as grandezas do presente. É nesta
linha que se insere também o Ritratto et Riverso del Regno de Portogallo,
apesar de o autor, ainda anónimo, perseguir um programa não só
filosófico mas também formal, algo diferente do cumprido por Damião
de Góis na Urbis Olisiponis descriptio.
O objectivo do autor italiano não é o de tratar um itinerário através de uma
determinada região, reconstruindo a história antiga e moderna daqueles lugares,
mas o de facultar aos leitores italianos que não conheciam a realidade
portuguesa um tratado descritivo do Reino de Portugal, assim como este se
apresentava num momento bem definido da sua evolução histórica, social e administrativa.
No acto de introduzir a segunda parte do seu tratado, o autor oferece também
uma primeira indicação acerca do género em que se coloca a sua obra: O retrato deste reino de Portugal, que V.S.
me mandou, li-o com aquela avidez e com aquele gosto com que se lêem as coisas
belas e mui desejadas. Todavia, segundo algumas outras informações que tenho, pareceu-me
ver sobretudo muito engenho e muita eloquência, mais do que o completo relato
daquele reino. Não por que as coisas que escreveis não sejam verdadeiras, antes
as tenho por mui verdadeiras, mas por que julgo haver muitas (talvez não
tão louváveis) de que não fazeis menção
alguma.
O retrato
é portanto atribuído a um autor cuja qualificação e especialização ficam
desconhecidas, apesar de se tratar de uma pessoa que possuía muito engenho e muita eloquência.
A resposta-complementa, isto é o reverso
com base num artificio retórico, representaria um texto redigido por motivos
contingentes e fortuitos já que, como vinca o autor: ao tempo que recebi a vossa [obra], estavam aqui comigo dois nobres
italianos, práticos das coisas do mundo, um dos quais tinha residido muito
tempo naquela Corte. O gentil-homem ao qual foi pedida a opinião sobre
aquela descrição do Reino de Portugal, teria notado que se tratava de um
verdadeiro retrato e que, consequentemente, os retratos necessitam de um reverso:
ele declarava-se, portanto disponível a redigir o reverso daquele retrato
para que em tudo fosse perfeito. Fazendo recurso a este artifício retórico o anónimo
florentino, elimina qualquer responsabilidade própria de carácter moral e
informativo, não só porque atribui as duas partes do texto a dois autores
diferentes da sua pessoa, mas também porque, no mesmo momento em que declara
que se trata de um retrato e de um reverso, justifica também certas
escolhas formais e de conteúdo. Depreende-se assim, claramente, que a obra
respeita uma bem definida retórica, baseada no jogo dos contrastes e das
contraposições e que, portanto os materiais informativos e a realidade
apresentada sofrem uma determinada transfiguração literária ditada pelo próprio
género». In Carmen Radulet, Um Retrato Italiano de Portugal no Século XVI, a
Joaquim Veríssimo Serrão os Amigos, Fraternidade e Abnegação, Academia Portuguesa
da História, Lisboa, 1999, ISBN 972-624-126-X.
Cortesia
da APdaHistória/JDACT