quarta-feira, 23 de julho de 2014

A Hora Universal dos Portugueses. Pedro Veiga. «… a Península, foi o entreposto natural das duas civilizações, a chave de todos os roteiros marítimos que seguiram os povos vindos do oriente asiático ou do norte africano, ao mesmo tempo que o ‘términus’ das longas estradas terrestres…»

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«Neste ensaio mal esboçado, pobre de húmus erudito, daquele lastro espesso que os assírios sábios da nossa Terra tem por hábito acumular nos rodapés das suas sapientes memórias e que na opinião duns tantos se considera cultura, se quis de relance abordar alguns dos problemas que para o homem moderno a Renascença representa na trajectória histórica do Ocidente. Uma afirmação capital ressalta do texto: a de que, consciente ou inconscientemente, reagindo contra as forças particularistas das hierarquias militares e nobiliárquicas inspiradas pela feudalidade e o espírito universal e internacionalista da igreja, a classe burguesa forjou a consciência nacional e concebeu a nação como expoente territorial e político dos interesses do Povo, fora das castas e das dinastias. A pátria é, pois, um produto da inteligência burguesa.
A arqueologia pré-histórica, afirma Ricardo Severo, o português das duas bandas do Atlântico, com o seu método naturalista de análise, desfez a miragem oriental; que colocava nesse ideal paraíso onde raiam as auroras, a fonte de todos os povos e civilizações. Afirmou-se com nitidez a existência de uma civilização ocidental, que tem as suas artes e indústrias, que tem uma escrita composta de sinais alfabétiformes, que tem, em suma, vigor e cunho originais, (in Origens).
Para além dos Romanos, senhores do mundo, além ainda do mais puro arcaísmo grego, resumido na cultura micénica, a Península, como diz o arqueólogo invocado, foi o entreposto natural das duas civilizações, a chave de todos os roteiros marítimos que seguiram os povos vindos do oriente asiático ou do norte africano, ao mesmo tempo que o términus das longas estradas terrestres do centro, do norte e do oriente europeu. Aqui se estabelece o polo ocidental. Nesses factos remotos há um sopro de predestinação e as barcas acompanham já o jeito da onda ao seguirem de angra em angra, ao singrarem até às radas, lançando o fundamento de novos povoados nas concavidades do litoral.
Não se pode hoje ignorar que lado a lado do viver agrário e patriarcal das tribus e povos que pelas encostas e cumeadas, nos castros e cividades que fundaram, foram os precursores remotos da gente portuguesa, uma importante vida marítima na safra da pesca e no serviço da navegação se assinala já nas povoações ribeirinhas do mar, abrindo às perspectivas do tráfico externo os compartimentos do interior. E agora, contemplando a paisagem humana que pelos séculos fora vem até nós, vemos o velho Portugal ganhar vida própria, depois que as ambições medievais encontraram seguro penhor de independência na própria grei, em certa pureza genealógica que lhe dava unidade e que a onda sarracena não conseguiu anular e a terra, nos seus afagos e na sua mediania, mantinha vivaz e fecunda, dando à sociedade rudimentar dos começos do período portucalense uma feição constitucionalmente democrática, como diz Alberto Sampaio, na qual os nobres e cavaleiros vivem em comunidade com os humildes lavradores.
Os bastiões da nacionalidade estão aí, na irmandade do sangue e na pobreza forte, que hoje ainda, são, porventura, a fonte mais pura da solidariedade entre a gente lusitana. O mais que os críticos da história erigem em causa, em razão condutora, seja a atracção do mar, a política centrífuga, o sentido cosmopolita (factor económico-geográfico), seja a superior política dos grandes órgãos da cristandade militante, de além Pirinéus, a ordem de Cluny, seja a vontade forte dos barões, que à realeza investida de divino poder, opõe a aristocracia fechada e igualitária, de tradições germânicas, ciosa dos seus foros e de espada livre (factores políticos, ecuménico um, particularista outro), são forças que, sem dúvida desencadearam e hoje explicam a acção, mas que ao cabo fracassariam se um sentimento bem vivo de comunhão familiar não se elevassem da grei. E é ela, heróica de virtudes e vigorosa de robusta personalidade, que enche a cena da História quando os olhos se volvem ao passado e contemplam a sombra gigantesca que Portugal projectou no mundo». In Pedro Veiga, A Hora Universal dos Portugueses, Tipografia Sequeira, Prometeu, Porto, 1948.

Cortesia de T.Sequeira/JDACT