«O
que vive é indestrutível, permanece livre em sua forma de servidão mais
profunda, permanece uno e, mesmo que o divida até o fundo, permanece
invulnerável, e mesmo que o despedace até a medula, seu ser escapará vitorioso
por entre as mãos». In Hölderlin
A
transformação do conceito de Natureza e a constituição da experiência moderna
«Outrora
tinham [os homens] um céu dotado de vastos tesouros de pensamentos e
imagens. A significação de tudo que existia estava no fio de luz que o unia ao
céu; então, em vez de permanecer neste [mundo] presente, o olhar deslizava além
rumo à essência divina: uma presença no além, se assim se pode dizer»
«Essa passagem do Prefácio da Fenomenologia
do espírito é um ponto de partida adequado para uma exposição da
concepção cosmológica dos antigos. O universo, em tal tempo antigo, possuía um
sentido determinado; nada na sua natureza lhe escapava, pois possuía o comum
em sua essência. A filosofia buscava essa essência transcendente e
significativa das partes na totalidade iluminada pela razão (lógos), a qual compartilhava da mesma
luz com as estrelas. Tudo o que o homem abarcava com sua visão possuía sentido
e era-lhe, ao mesmo tempo, espantoso e comum; a este comum, que
em tudo visava, denominou-se princípio
(arkhé). Dessa forma, a natureza possuía uma ordenação substancial
própria, o que lhe conferia não só uma harmonia, mas também uma beleza. Tal
ordenação e racionalidade garantiam a conformidade entre o pensar e o ser,
assim como entre o conteúdo e a forma, ou ainda, entre o espírito e a natureza,
conciliados de forma intuitiva e imediata no lógos. Por isso, não se
perguntava propriamente pela necessidade de tal síntese, pois esta era uma
evidência. Sendo assim, os filósofos
antigos não sentiam, como os românticos modernos, acerca da unidade
primordial, semelhante nostalgia, senão,
pelo contrário, uma perfeita satisfação e quietude dentro daquela certeza que
os levaria a ver um conhecimento no que não era mais que aparência. Na sua
aparência, o real, onde tudo se reunia, dava-se essencialmente: tudo é um, ou como afirmava Parmênides, o mesmo é pensar e ser, que seria a
própria experiência da totalidade.
O pensamento grego, que principiou com a experiência do espanto (tò thauma)
frente à unidade da multiplicidade na natureza, conferia à visão um papel
importante, como assinala Aristóteles na Metafísica, e talvez
nisso resida a gravidade estética do espírito grego. De modo que possui
a visão, por um lado, um sentido sensível, estético, no seu sentido clássico de
aísthésis, presente na relação em que o mutável e o contingente se
apresentam aos olhos; por outro lado, apresenta-se também como visão noética e
intelectiva do que subjaz e transcende à multiplicidade, como unidade da mesma.
A visão possibilita uma relação essencial entre o homem e o seu mundo, através
da contemplação (theoría) do imutável no mutável. Deste modo, a teoria
ou a contemplação consistiria em colocar diante do espírito a unidade do que se
mostra múltiplo aos olhos, como um movimento do sensível ao inteligível. Nessa
busca essencial pela unidade, a experiência grega frente à natureza se
constituiu numa ontologia, cuja pergunta principal é pela entidade do ente, ou,
como afirma Aristóteles, a ciência do ente
enquanto ente. Faz-se premente o estabelecimento das bases ontológicas do
pensar, em que a natureza possuiria a forma determinada de uma totalidade
ordenada objectivamente, constituindo-se propriamente como um Cosmo.
Para
Hegel, os gregos concebiam uma unidade imediata entre espírito e
natureza, o que constituiria uma forma essencial no seu pensamento, no plano teórico; e de sua
sociedade, no plano prático, tendo por si tal unidade consigo mesma, como uma
intuição do Cosmo, que possui não só o sentido de uma harmonia preestabelecida,
mas também belo.
Como identifica Hegel: a fase da consciência
grega é a fase da beleza, beleza esta que brota do Espírito como idealidade
e pensamento constituindo a relação entre homem e natureza. Com isto, a
experiência grega gira em torno de uma idealidade estética, segundo a qual a
subjectividade no seu modo de ser ainda se vincula
imediatamente à natureza e ao sensorial, ainda que o transcenda
intelectivamente. Tal vinculação finda por concluir que o espírito grego ainda
não se representa a si mesmo (auto-conscientemente)
e não se constitui num mundo para si mesmo, a não ser intuitivamente. Nessa
unidade imediata, essência espiritual não seria algo estranho à natureza, mas
algo essencialmente relacionado com ela, e mesmo subsumido nela. Afirma Hegel: os gregos têm como base, como essência a unidade
substância da natureza e espírito».
In
Alexandre Moura Barbosa, Ciência e Experiência, Ensaio sobre a Fenomenologia do
espírito de Hegel, Editora Universitária, Edipucrs, Porto Alegre, 2010, ISBN
978-85-7430-970-5.
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