segunda-feira, 14 de julho de 2014

Hospital das Letras. Ensaios. David Mourão-Ferreira. «… e razão tinha, porventura, Carolina Michaelis Vasconcelos, ao referir-se-lhe como a um espírito que pretendia inovar, e estava fazendo as suas contas com o passado»

jdact e wikipedia

Sá de Miranda. Inovação e Polemismo. Inovações temáticas e inovações formais
«(…) De qualquer modo, o decassílabo representou, em última análise, o eixo ao redor do qual giraram as suas restantes inovações. Antes de mais, impunha-se, de facto, um novo metro, amplo, dúctil, gracioso e austero, capaz de quebrar a tirânica monotonia das redondilhas (incluindo o próprio verso hendecassilábico de arte maior, que mais não era que articulação de duas redondilhas menores) e de exprimir, em suma, o que nessa mesma regla estrecha de modo algum já podia caber. E o decassílabo era precisamente o que convinha, porquanto se afirmara, desde logo, nos padrões italianos a que Miranda foi buscá-lo, aquele divino instrumento, perfeccionadíssimo, de maravilhosas voces, registros y potencias, que unía en si gravedad, matiz, ftexibilidad, fuerza y siempre, siempre elegancia. Pertence a Dámaso Alonso esta luminosa caracterização. E não nos admiremos que ele assim defina o decassílabo, não através de frias e técnicas designações, mas em cálidos termos de conteúdo: não há forma que não seja fundo, ou que irrestivelmente o não sugira. Jamais um metro se reduz a simples diagrama; e o decassílabo, como pura medida, não passa de abstracção: a realidade decassílabo só se torna visível no caso concreto de cada decassílabo. Não foi pois uma medida, um diagrama, uma abstracção, o que Sá de Miranda introduziu na poesia portuguesa. Ele tratou, pelo contrário, de traduzir, concretamente, em decassílabos concretos, uma experiência concreta (pessoal e cultural), a que já não quadrava o espartilho, gracioso que fosse, da medida velha.

Manual do perfeito inovador
Para bem entendermos o significado das inovações mirandinas, há que ter presente o estado de saturação, tão largamente evidenciado no Cancioneiro Geral, de um tipo de poesia cortesanesca e metricamente uniformizada, a que ele próprio, é certo, também não deixou de render tributo. Mas não será audacioso presumir que a mesma publicação do Cancioneiro (1516) tenha inclusivamente suscitado, no nosso poeta, um primeiro desejo de reacção contra essa monotonia formal. E o facto de figurar entre o elenco escolhido por Garcia de Resende não o terá inibido, antes poderá tê-lo estimulado a empreender novos caminhos: também Verlaine e Mallarmé começam por colaborar no Parnasse Contemporain; também Fernando Pessoa, embora com textos doutrinários, começa por colaborar em A Águia.
Com muita finura e inteligência, Andrée Crabbé Rocha empenhou-se em considerar o Cancioneiro Geral como ponto de partida para toda a ulterior poesia portuguesa. É bem provável, todavia, que ele representasse sobretudo um terminus ad quem, e não um terminus a quo, para um poeta como Sá de Miranda; e razão tinha, porventura, Carolina Michaelis Vasconcelos, ao referir-se-lhe como a um espírito que pretendia inovar, e estava fazendo as suas contas com o passado. Note-se, desde já, que esse ajuste de contas não será radical: Sá de Miranda tinha, com efeito, o gosto suficientemente esclarecido para se aperceber das extraordinárias virtualidades da medida velha, para continuar portanto a utilizá-la e para compreender que o pecado, no Cancioneiro Geral, era somente o do seu exclusivo emprego. António Ferreira, mais tarde, pecará pelo excesso oposto: com a ardência de todos os neófitos, empregará apenas as formas italianas. Na mesma geração, contudo, e de maneira genial, Camões realizará a síntese. Mas a verdade é que ela se encontra já lucidamente sugerida no próprio Sá de Miranda, em cuja obra se concentra, ou prefigura, dialecticamente articulada, toda a evolução da poesia do século XVI». In David Mourão-Ferreira, Hospital das Letras, Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1966.

Cortesia de GuimarãesE./JDACT