sábado, 5 de julho de 2014

Diálogo de Civilizações Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo Perdido. Gouveia Monteiro. «… o Oriente foi quase sempre uma invenção da Europa, pensado desde a Antiguidade como um lugar de fantasia, repleto de seres exóticos, de lembranças e de paisagens hipnóticas, de experiências extraordinárias»

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Variações sobre uma Ideia de Oriente
«Edward Said, um dos mais reputados intelectuais palestinianos, falecido recentemente, antigo professor da Universidade de Columbia nos USA, sustenta na sua obra Orientalism (1978) a tese segundo a qual a ideia de Oriente é, no essencial, uma criação da civilização ocidental. Com efeito, se tem sentido falar-se de uma civilização ocidental, cada vez mais universal e planetária, não se pode dizer o mesmo em relação aos países que o imaginário ocidental identifica como sendo orientais. Citando Edward Said: o Oriente foi quase sempre uma invenção da Europa, pensado desde a Antiguidade como um lugar de fantasia, repleto de seres exóticos, de lembranças e de paisagens hipnóticas, de experiências extraordinárias. Este Oriente está agora em vias de extinção. Não se trata de negar a existência material e cultural de diversas culturas a que chamamos orientais, mas da percepção de que a imagem comum do Oriente é, antes de mais, uma construção imaginária derivada do passado histórico de diferentes povos europeus, entre os quais sobressaem os ingleses, os franceses, os russos e, naturalmente, os portugueses.
Com efeito, no limite, não existe tal entidade, o Oriente ou o pensamento oriental; o que existe, sim, são um conjunto complexo de representações nos domínios das artes, da filosofia, da religião de cada um dos povos coloniais europeus sobre a existência de um mundo distante, pleno de exotismo e de fantasia, de paisagens fabulosas, lugar de meditação, de sonho e de evasão. Daí ser possível falar-se de sensibilidade, de pensamento, de sensualidade, de despotismo, de medicina, de sabedoria oriental, seja esse Oriente situado na Índia ou no Japão, nas Terras do Levante ou na China dos Mandarins. Se adoptássemos uma atitude pragmática sobre esta questão, considerando como único critério válido o geográfico, de tal modo que o oriental seria tudo aquilo que ficaria situado a Oriente da Europa (afinal o Oriente é, em primeiro lugar, uma orientação no espaço), mesmo esse critério seria fonte de confusões, visto que o imaginário europeu sobre o Oriente não se circunscreveu aos povos asiáticos, mas compreendeu, pasme-se, representações do mundo directamente importadas do Norte de África. O critério geográfico apenas nos assinalaria uma vasta área, tão diversificada a nível de costumes, de tradições e crenças que supor, por exemplo, quaisquer semelhanças entre as principais cidades da Índia e do Japão apenas nos poderia fazer sorrir.
O Oriente foi sempre para a cultura europeia o Outro imaginário de nós próprios. Numa palavra, o Oriente tem sido sobretudo a imagem, muitas vezes invertida, plena de sedução e de horror, daquilo que nós próprios julgamos ser. Este sentimento do Oriente como o Outro de nós mesmos, a imagem de algo estranho que simultaneamente nos atrai e inquieta, tão bem retratado no romance dos anos 20 de Forster (Passage to India) na figura de Adela, essa jovem britânica simultaneamente fascinada e transtornada por um mundo que é a imagem negativa da sua terra natal, constitui uma atitude generalizada que percorre a civilização ocidental desde a Antiguidade. Se, em termos históricos, podemos situar o nascimento do Orientalismo, enquanto preocupação sistemática com o Oriente, em 1312, quando o Concílio de Viena autorizou o estudo académico do árabe e do hebraico nas principais universidades europeias, a constituição de um Oriente como uma imagem especular do Ocidente, mesmo invertida, está presente já na própria cultura clássica antiga, como é o caso da tragédia de Ésquilo, Os Persas, cujos dramas se passam na corte de Xerxes, ou então da peça de Eurípides, As Bacantes, que descreve o desenlace trágico do confronto entre o oriente dionisíaco e o ocidente apolíneo em plena Hélade». In Carlos João Correia, Variações sobre uma Ideia de Oriente, João Gouveia Monteiro, Diálogo de Civilizações, Viagens ao Fundo da História em Busca do Tempo Perdido, Reitoria da Universidade de Coimbra, 2003, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2004, ISBN 972-8704-37-2.

Cortesia da U. de Coimbra/JDACT