sexta-feira, 18 de julho de 2014

Um Retrato Italiano de Portugal no Século XVI. Carmen Radulet. «… mas que no reverso quis olhar para o País por outro prisma e relatar as coisas más, os aspectos feios dos Portugueses e que dedicou um pouco mais de espaço a este reverso que é um libelo terrível contra Portugal…»

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«(…) A primeira parte começa com uma breve descrição geográfica do Reino, descrição em que o autor respeita o esquema típico dos tratados epidíticos, tão na moda na Itália do século XVI, para abordar depois as questões relacionadas com a situação administrativa, com o sistema jurídico e com a organização religiosa. Depara-se, sobretudo, que o autor conhece em profundidade o sistema jurídico português, que apresenta em toda a sua complexa estrutura: corregedores do cível e do crime, juízes do cível e do crime, ouvidores da alfândega, juízes das propriedades, juízes dos órfãos, juiz da Índia, Tribunal da relação do cível, Tribunal dos feitos novos, Casa da suplicação, Desembargo do Paço, Mesa da Consciência, etc.. Neste retrato, o autor não esquece de assinalar o facto que além daquilo que o rei de Portugal possui na Europa, ele é também senhor, na África, de Ceuta, Tânger, Arzila e Mazagão, que são quatro praças fortes de honesta grandeza na Mauritânia Tingitana, as duas primeiras no estreito de Gibraltar e as outras duas seguindo a costa, mais a poente. A Ilha da Madeira é igualmente sua, distante de Lisboa 150 léguas. É senhor das Terceiras, chamadas ilhas dos Açores, que são oito, s., a Terceira, S. Miguel, Santa Maria, S. Jorge, o Pico, o Faial, a Graciosa e a das Flores, todas distantes de Lisboa 300 léguas. E visto que, seguindo a costa da África, quase por toda a parte, junto ao mar, tem muitas fortalezas e ilhas até chegar à Índia, passarei a indicar a maior parte.
A esta realidade, menos conhecida pelo público italiano, o autor dedica amplo espaço, procedendo a uma descrição pormenorizada em que, seguindo a costa ocidental da África chega até Malaca e, para o ocidente ate ao Brasil, descrição em que indica não só as possessões portuguesas mas também, o seu regime político, o comércio e as rendas que a Coroa recebe destas praças e regiões. Se, neste retrato o Reino de Portugal é apresentado de uma maneira precisa e completa no que diz respeito à sua organização administrativa, política e económica, não o é no que toca à sociedade não directamente envolvida no sistema burocrático do Estado: encontram-se sobretudo breves notícias sobre a nobreza, sobre a concessão dos encargos públicos, dos benefícios e das comendas.
A segunda parte da obra, o reverso, não foi elaborado, como poderia parecer à primeira vista, como contraposição da primeira, mas como sua integração, como complemento capaz de propor ao leitor um conjunto amplo e variado da realidade portuguesa. Neste reverso o autor retoma brevemente, em sentido negativo, alguns dos temas abordados na primeira parte e enfrenta novos assuntos relacionados sobretudo com a qualidade da vida e com o sistema social descrição de Lisboa e reflexos da estrutura arquitectónica sobre a vida quotidiana, vias de comunicação, fortalezas, ordens militares, componentes étnicas, hábitos da vida das diferentes camadas sociais, relação da população com a religião, etc.
Oliveira Marques vinca ainda na sua breve introdução que o autor tentou dar no retrato uma descrição objectiva de Portugal e das coisas positivas que encontrou neste reino, mas que no reverso quis olhar para o País por outro prisma e relatar as coisas más, os aspectos feios dos Portugueses e que dedicou um pouco mais de espaço a este reverso (20 páginas manuscritas num total de 37) que é, na realidade, um libelo terrível contra Portugal, cujo povo ele desprezaparu além de todas as medidas. Esta impressão, justa, à primeira vista, deve todavia ser corrigida através da avaliação de alguns factores colaterais, como são o género em que se insere a obra e a cultura de um autor italiano do século XVI, para o qual a vida espiritual e material com que era habituado no seu país tinha um peso condicionante nas considerações sobre uma realidade bastante diferente, como era a portuguesa.
Durante os séculos XVI e XVII depara-se com um fôlego muito marcado do homem europeu de descrever e definir não só o mundo que estava descobrindo e explorando, mas também os países que se integravam numa Europa, aparentemente bem conhecida. Neste sentido a Península hispânica não foge à regra e, por exemplo, Damião de Góis, seguindo a linha de um Lúcio Marineo Sículo que tinha escrito De Laudibus Hispaniae  e, ao mesmo tempo, para combater as informações não correctas e depreciativas incluídas por Sebastião Münster na sua edição da Geografia de Ptolomeu, elabora em 1541 uma obra intitulada Hispania, enquanto que Pedro Medina publica em Sevilha, em 1548, o seu Livro de grandezas y cosas memorables de España». In Carmen Radulet, Um Retrato Italiano de Portugal no Século XVI, a Joaquim Veríssimo Serrão os Amigos, Fraternidade e Abnegação, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1999, ISBN 972-624-126-X.

Cortesia da APdaHistória/JDACT