Copilacam de Todalas Obras de Gil Vicente
«(…) Com excepção dos três autos mencionados, de que não apareceu até
hoje um exemplar, temos a obra de Gil Vicente quase intacta. É evidente
que nos referimos à edição de 1561-1562, uma vez que na edição de 1586 os cortes foram imensos e atingiram:
os prólogos de Luís Vicente e
de Gil Vicente; as tragicomédias Exortação da Guerra, Templo
de Apolo e Romagem de Agravados; as farsas Auto das Fadas, Clérigo
da Beira e o Auto dos Físicos; a pregação feita em Abrantes e a carta a El-Rei sobre o tremor da terra. Mas,
como já anotou Almeida Fernandes, não são exactamente estas indicações que
segue o censor do exemplar de Mafra, mas sim as do Index auctorum damnatae memoriae,
impresso em 1625, por ordem de
Francisco Martins Mascarenhas. Há, no entanto, certos tipos de intervenção que
os índices não previam, e, assim, nós vamos encontrar naquele exemplar, para
além de anotações marginais como : na Comédia de Rubena (Toda esta
Comedia he prohibida, e não se pode ler sem licença); na Farsa
dos Almocreves (toda se prohibe); no Testamento de Maria Parda
(daqui por diante todo he prohibido (...) o testam.to de M.ª Parda),
três modos de censura, que exemplificaremos:
- Determinações do Index.: No Auto da barca na primeira Scena, que começa à barca, à barca oulá, no dito da Alcoveteyra Brisida Vaz, se tire o verso que começa seiscentos, &c.; A Cumedia de Rubena repartida em tres Scenas & começa, En tierra de campos, alla en Castilla, &c. acaba ventura bem empregada, toda se prohibe (aliás, como se vê na reprodução que apresentamos, só foi cortada a primeira cena); A Tragicomedia de Dom Duardos da impressam mais antigua se prohibe, por andar outra já correcta da impressam de 1586 pera cá...;
- Passos proibidos, não riscados no exemplar de Mafra: para além das cenas segunda e terceira da Comédía de Rubena, citemos mais dois exemplos: Do auto intitulado Mofina mendez ... logo no princípio se risque o dito do Frade, começa, Tres cousas acho que fazem, acaba, & hüa gorra d'orelhado; … no Auto da barca 3 que começa, Patudo ve muy saltando, se risque no cabo de todo o auto, & veyo Christo da ressurreiçam, &c. atè, Laus Deo, exclus;
- Passos apenas riscados no exemplar de Mafra: No Auto dos Reis Magos, fól. 6 r. e v., e fó.7 r. e v.; no Auto da Cananeia, na fala de Belzebu, fól. LXXXII v. e LXXXIII.
Estes são, como disse, apenas alguns exemplos, que se reproduzem em
fac-símile. É possível que num fólio inicial, que falta, se contivesse uma legenda
manuscrita, à maneira deste Suetónio que se reproduz. A censura do
exemplar de Mafra obedeceu à conhecida ordem de que se hão de entre gar ao sancto Officio (maldito), para se riscarem nelles
certos passos. que podem fazer dano, ou foi da iniciativa de qualquer
superior eclesiástico, que assim mandou proceder para que a obra pudesse ser utilizada pelos frades? Cremos que, dos
elementos que apresentámos, se pode deduzir que esta censura obedeceu em grande
parte às determinações do Index de 1624 e ao capricho pessoal de qualquer censor improvisado ad hoc.
Quais os efeitos práticos
deste tipo de censura? Apenas se verificariam na proibição de
representações (que raras vezes se realizariam, não há notícias disso), mas não
no conhecimento dos textos. Foi Gil
Vicente verdadeiramente censurado ? Sim, naqueles autos que desapareceram de todo e já não constam da Copilacam.
Mas o texto desta não deixou de estar acessível (em raros exemplares, é certo,
mas ainda assim acessível), não obstante as reduções que sofreu a Copilacam
de 1586.
Em vida do genial escritor, quem
o impediu de escrever e criticar com graciosa soltura de palavras, se as
próprias autoridades régias se divertiam com tal procedimento? Após a
morte, não foi difícil cevar na sua obra: no entanto, qual Horácio redivivo, Mestre
Gil não só non mortuus est omnis, mas, pelo contrário, tem visto acrescida
a sua obra de peças que não foram incluídas na Copilacam, como o Auto
da Festa, para não falar de outras que se tem pretendido atribuir-lhe,
como o Auto de Deus Padre, Justiça e Misericórdia e a Obra
da Geração Humana. Mas, neste último aspecto, a posição que me parece
mais prudente é a de Paul Teyssier, há pouco expressa: Não consideramos vicentinos dois autos anónimos que Révah atribui ao
nosso autor : o Auto de Deus Padre, Justiça
e Misericórdia e Obra da Geração Humana. Nenhum argumento decisivo, de
facto, pode ser invocado para justificar esta atribuição, e um método são exige
que não se reivindique paru um autor a paternidade duma obra pela simples razão
de se julgar que é digna dele». In Justino Mendes de Almeida, Estudos de
História da Cultura Portuguesa, Academia Portuguesa da História, Universidade
Autónoma de Lisboa, O Pernix Lysis, Lisboa, 1996.
Cortesia da Academia P. de História/JDACT