O Maravilhoso no Ocidente Medieval
«(…) Fronteiras do maravilhoso, enfim, que ameaçam o próprio maravilhoso,
que assim corre o risco de dissolver-se: são as diferentes formas de
recuperação. Reduzi-las-ia a três capítulos: a recuperação cristã em geral,
a recuperação científica, a recuperação histórica. A recuperação
cristã canalizou o maravilhoso, por um lado, para o milagre, por outro, para
uma recuperação simbólica e parenética. Entre muitos, escolhemos um exemplo
belíssimo. Trata-se da evolução das versões latinas do Physiologus.
Inicialmente, temos versões que nos contam maravilhas sem que delas nos sejam
apontados significados e explicações simbólicas. A seguir, e cada vez mais, as
explicações simbólicas e parenéticas devoram, por assim dizer, a substância do Physiologus,
enfraquecendo-o. Uma segunda forma de recuperação, muito interessante, é a recuperação
científica de um certo número de intelectuais, de estudiosos, que possuíam
verdadeiramente aquilo a que hoje chamaríamos o espírito científico.
Estes tendem a fazer dos mirabilia
fenómenos marginais, casos-limite, excepcionais mas não fora da ordem da
natureza e verdadeiros, embora não tenham o aval da Bíblia. O melhor exemplo
desta mentalidade é-nos proporcionado, parece-me, pelo próprio Gervásio Tilbury
que, no prefácio a Otia Imperialia,
desenvolveu longamente, em textos apaixonantes para a história do espírito
científico, esta tendência para ligar os mirabilia
como mundo natural e, por conseguinte, científico. Mirabiliavero dicimus quae nostrae cognitioni non subjacente etiam
cum sint naturalia.
A pari passu com esta recuperação
científica vai também a recuperação histórica. Trata-se do desejo de ligar os mirabilia a acontecimentos e datas. E,
com este estratagema, os mirabilia,
que só se tornam manifestos numa paragem do tempo e da história, são também levados
ao esvaziamento. Tenho a impressão de que em tudo isto se manifestam tendências
que, embora comuns a religiões como, por exemplo, o islamismo e o cristianismo,
parecem mais próprias do cristianismo: tendência para o simbolismo e para a
fixação ética, tendência para a racionalização científica e histórica.
Poder-se-ão identificar aqui e ali
correntes de fundo, inimigas ocultas do maravilhoso? Poderia ser essa
uma linha de ulterior pesquisa.
O Deserto-Floresta no Ocidente Medieval
Pretendeu-se por vezes pôr em relação ambiente desértico e fenómeno
religioso. Perguntou-se se haverá uma religião no deserto, se o deserto predisporá
para um determinado tipo de experiência religiosa de preferência a outro. De um
modo particular, pensou-se que o deserto favorece o misticismo. Há cerca de cem
anos, em 1887, na sua Histoire du peuple d'Israël,
Renan afirmava, não sem audácia: O
deserto é monoteísta. Estas teses, que, em última análise, se fundam
num determinismo geográfico um tanto simplista, não podem hoje ser aceites como
boas. Mas o deserto, autêntico ou imaginário, desempenhou um papel importante
nas grandes religiões euro-asiáticas: judaísmo, islamismo, cristianismo. Habitualmente,
representou os valores opostos aos da cidade
e, por isso mesmo, deve interessar a história da sociedade e da cultura. No
cristianismo medieval, a ideologia do deserto apresentou-se de uma forma
inédita: o deserto foi a floresta».
In
Jacques le Goff, Il meraviglioso e il quotidiano nell’occidente medievale,
Gius, Laterza, 1983, Roma, O maravilhoso e o quotidiano no ocidente medieval,
Edições 70, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-44-1563-5.
Cortesia de E70/JDACT