quarta-feira, 23 de julho de 2014

A Historiografia Sociológica de António Sérgio. Victor Sá. «Ora ele queixa-se (em 1949) do que foi esse mar tenebroso por onde vagueou aos vinte anos, isto é, no final da Monarquia, no princípio do século, no tempo da propaganda e da proclamação da República»

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Que nação somos, que poderemos ser, por onde vimos?
«(…) De ascendência e formação monárquicas demitiu-se de oficial da Marinha, porque não quis servir nas forças armadas da República. Foi um acto de consciência formal, que não invalidou a sua consciência de cidadão português e de intelectual convicto dos seus deveres de cidadania. Pode por isso prestar ao seu país, e à própria República, o mais prodigioso serviço: criticando as instituições, procurar nos baixios mais profundos da História nacional a razão daquilo que, no tempo dele, era tema de reflexões literárias: as causas do que se chamava a nossa decadência. Meio século decorrido, mais precisamente em 1959, relembrará o objectivo pragmático, reformador, de uma das constantes do seu labor intelectual, os estudos da interpretação histórica que aqui nos interessam: O meu objectivo não é propriamente o de informar sobre a História mas o de formar o espírito da gente moça para uma visão filosófica e sociológica dos factos, como preparação para a obra da elevação do Povo, que lhe cumpre agora empreender. A interpretação da História pátria constituiu, efectivamente, para Sérgio um postulado necessário, um suporte dos seus planos de reformação: Com que espírito deveremos nós, os portugueses da minha idade e os mais moços que os da minha idade, considerar a nação de que somos parte e os grandes factores do seu destino? Que somos, que poderemos ser e por onde vimos? Que nos falta, que sabemos e que faremos? Que exemplo nos dão os nossos avós, que nos ensinaram os nossos mestres, e que atitude nos convém tomar para com o vezo mental em que nos educaram?
Estas perguntas inquietas e dramáticas fazia-as Sérgio em 1920, aos 37 anos de idade, no auge de uma juventude que fora, a um tempo, operosa, rebelde e indagadora. Que nação somos, que poderemos ser e por onde vimos? Estas perguntas, que lança ao apresentar o primeiro volume dos Ensaios, constituem de certo modo o escopo de toda a sua actividade intelectual. Ao longo de uma vida de torturado e incompreendido, a incompreensão tem sido sempre
o meu fado, 1949, quatro foram os escopos, os modestos incitamentos (como diz noutra passagem, já em 1955) para as revoluções culturais ou culturais-sociais em que se empenhou:
  • a económica, pelo cooperativismo;
  • a filosófica, pela reflexão problemática a partir da ciência;
  • a historiográfica, pela introdução da problemática sociológica na maneira de escrever a nossa História;
  • a pedagógica, na escola geral, pela instrução activa e de teor problemático, pela escola do trabalho e pelo self-government escolar.
Difícil é separar em Sérgio os quatro escopos, de tal modo eles se interligam e completam constituindo a unidade forte do seu pensamento, este mesmo indissociável do seu pendor dialéctico para o intervencionismo, a polémica, a ideia feita acção. Mas, neste opúsculo, vamos tentar, sem nos esquecermos de que o seu pensamento e a sua obra não se esgotam aí, detectar as ideias mestras das suas concepções da historiografia sociológica, que ele utiliza como meio de contribuir para diagnosticar e combater os vícios históricos da sociedade» portuguesa. Pensamento dialéctico e intervencionista que é (e que o não fosse), é em consonância com o meio e com a época em que viveu que se encontram os parâmetros que o enformaram, o provocaram, o condicionaram. Ora ele queixa-se (em 1949) do que foi esse mar tenebroso por onde vagueou aos vinte anos, isto é, no final da Monarquia, no princípio do século, no tempo da propaganda e da proclamação da República: Lúgubre, sem hábitos, cheio de cerrações, hostilíssimo. Ali, que vastidões de amargor, que solidões tão sombrias! E depois, por aí fora, quantos embates com a estolidez dos retóricos! Quantos com os charlatães, com os petulantes, quantos! E com a incompreensão dos facciosos, e com a dura estreiteza dos dogmáticos! A que atribuía Sérgio esse mar tenebroso por onde vagueou, lúgubre, sem hábitos, cheio de cerrações, hostilíssimoIn Victor Sá, A historiografia sociológica de António Sérgio, Instituto de Cultura Portuguesa, CV camões, Biblioteca Breve, Gráfica da Livraria Bertrand, 1979.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT