«Ano
do Senhor de 1227. Diocese de
Narbonne. No seu ponto mais alto, a fachada da velha igreja paroquial era dominada
por uma abertura circular pela qual já não entrava luz, nem mesmo nos dias ensolarados.
Seria pretensioso defini-la como um óculo, pois tratava-se de uma cavidade moldada
pelas intempéries, a órbita de uma grande caveira onde o vento vinha brincar. Através
desta abertura, o olhar de uma freira solitária vagueava pelo vale, por entre a
imensidão de verdes e as manchas esbranquiçadas dos rebanhos. Movia as pupilas quase
com inércia, indiferente aos sinais de uma primavera precoce. Eram outras as coisas
que lhe prendiam a atenção. Contemplava o perfil de uma época funesta, e permanecia
totalmente absorta ouvindo o repicar dos sinos de Saint-Denis que meses antes tinham
anunciado a reentrada de Luís VIII em Paris. O rei cruzado voltara cadáver, envolto
numa pele de vaca. No entanto, a freira não partilhava do pensamento comum, recusava-se
a encarar aquela desgraça como sendo a ameaça da Grande Ceifa. Não eram os
Cavaleiros do Apocalipse que punham a sua terra a ferro e fogo, fomentavam
o medo das heresias, davam voz aos falsos profetas. Tudo isso em nada dependia
de Deus, mas do género humano. E em parte também dela.
Fechou as pálpebras, na tentativa
de cortar a corrente deste seu raciocínio, mas a sucessão incessante de pensamentos,
semelhante a uma ressaca, trouxe-lhe à memória as visões de um inferno subterrâneo
onde eram os vivos e não os mortos a suportar o sofrimento. E, por momentos, sentiu-se
envolvida pelas trevas de Airagne...
Uma voz feminina fê-la voltar à realidade, mas, assim de repente, nem compreendera
o que ela dissera. Baixou os olhos na direcção do pátio e devolveu um sorriso de
gratidão à jovem irmã que a chamara. O que é?, perguntou-lhe, como se despertasse
de um sonho. Descei, bona mater,
disse a rapariga. Esforçava-se por parecer calma, mas a sua atitude revelava
alguma preocupação. Encontrámos outro.
Bona
mater,
repetiu para si própria a mulher que espreitava ao óculo. Embora não gostasse de
se enaltecer, não era uma freira qualquer. Fora ela quem infundira nova vida àquela
velha igreja paroquial, transformando-a num refúgio para mulheres piedosas, uma
beguinaria. Um sopro de alívio numa terra devastada pela guerra e, de
certa maneira, também uma forma de reparar o mal feito. Encostou-se ligeiramente
ao óculo, preparando-se para descer. Tendes a certeza?, quis assegurar-se. É um
possesso, como os outros. Negligenciando uma certa compostura, a freira começara
a explicar. Encontrámo-lo quando se abeirava do nosso poço. A monja levou a mão
ao peito; no rosto, a dureza de um soldado. Tem os indícios? Sim, os indícios de
Airagne. A mulher não hesitou.
Pelo contrário, apressou-se a juntar-se à companheira, ao mesmo tempo que uma nova
torrente de pensamentos perpassava pela sua mente. Quem sabe se o povo não teria
razão, se o Apocalipse não estaria próximo! E ao descer as escadas, não se dava
conta de ter fugido de um pesadelo para mergulhar num outro ainda pior. O pesadelo
da realidade.
O
conde de Nigredo
Soldados em marcha ao longo do
Guadalquivir. Ignazio Toledo observava-os, do alto, por entre o claro-escuro do
pôr-do-Sol, procurando discernir as cores das suas insígnias. Desceu do carro e
tirou o capuz que o protegera durante as horas de maior calor, deixando a descoberto
uns olhos astutos e uma barba de filósofo. Começou a percorrer o declive sem perder
de vista as manobras das tropas. O único destino possível era uma cidadela fortificada
a pouca distância de Córdova. Ali, iria encontrar o que procurava, estava certo
disso, mas uma tal intuição, embora não cedesse facilmente à sugestão, inquietou-o.
Era um homem racional, habituado a acreditar naquilo que podia compreender e a desconfiar
de tudo o resto. Estranha atitude para um mercador de relíquias.
Uma voz distraiu-o destes pensamentos.
Vejo-te preocupado. Olhou na direcção do carro. Era a voz do seu filho Uberto, que
segurava as rédeas, sentado no lugar do cocheiro. Era um jovem de vinte e cinco
anos, cabelo comprido preto e olhos subtis ambreados. Tudo bem. Ignazio perscrutou
de novo o vale. Aqueles soldados têm as insígnias de Castela, devem estar de volta
ao presídio do rei Fernando III. Temos de os seguir, quero encontrar-me com sua
majestade antes que se faça noite. Nem consigo acreditar! Nunca imaginei que alguma
vez iria ver o soberano. Habitua-te à ideia. Há duas gerações que a nossa família
serve a casa real de Castela. Ignazio esboçou um sorriso amargo e pensou no
pai, notarius do rei Afonso IX.
Raramente se abandonava a essas recordações, e quando isso lhe acontecia
procurava distrair-se e afastar a imagem daquele homem pálido e nervoso que passara
a vida, toda a sua velhice, na escuridão de uma torre a escrevinhar em pilhas
de papéis. Em breve irás perceber que tamanho privilégio comporta mais responsabilidade do que honras, comentou, suspirando.
Uberto
endireitou-se. Ouvi falar muito de Fernando III. Dizem que é um religioso fanático,
motivo pelo qual o chamam de o Santo.
E que, em nome da cruzada contra os mouros, expande os seus feudos para sul,
declarando guerra ao emir de Córdova... Ignazio calou-se, subitamente surpreendido
por um ruído de cascos a galope. Virou-se para oriente e viu um cavaleiro que se
aproximava à rédea solta. Willalme está de regresso, disse, fazendo um aceno na
sua direcção. O cavaleiro foi ao seu encontro, parou diante do carro e desceu do
cavalo, de um salto. Percorri a estrada principal e boa parte das secundárias, anunciou,
limpando o rosto e sacudindo o pó dos longos cabelos louros. Depois de viver há
tanto tempo em Castela, o seu sotaque francês quase desaparecera. Ninguém nos
seguiu». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução
de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.
Cortesia
de CAutor/JDACT