terça-feira, 15 de setembro de 2015

A Rapariga no Comboio. Paula Hawkins. «O comboio arrasta-se em frente; estremece por entre os armazéns e os reservatórios de água, pontes e barracões, passando por casas vitorianas modestas com as traseiras voltadas para a linha»

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«Ela está enterrada à sombra de uma bétula, ali junto aos velhos carris do comboio, com uma lápide a assinalar o túmulo. Não passa de um montículo de pedras, aliás. Eu não queria atrair atenções para a sua última morada, mas também não a poderia deixar sem lembrança. Há de descansar em paz ali, sem que alguém a venha perturbar, sem outra companhia além do canto dos pássaros e do troar dos comboios a passarem».

«Uma traz-nos dores; duas, alegrias, três, uma menina. Três, uma menina. E eu fico bloqueada no três, não consigo simplesmente passar daí. Tenho a cabeça cheia de ruídos, a boca empastada pelo sangue. Três, uma menina. Oiço as pegas a rirem-se, a fazerem troça de mim, com aqueles seus grasnidos roucos. Um presságio. Um mau presságio. Consigo vê-las agora, o preto recortado contra o sol. Não são as aves, é outra coisa qualquer. Vem aí alguém. Alguém está a falar comigo. Vê lá. Vê lá o que me obrigaste a fazer».

Rachel. 5 de Julho de 2013
«Há um monte de roupas ao lado dos carris do comboio. Um trapo azul-claro, uma camisa, talvez, misturado entre outros brancos encardidos. Provavelmente não passa de lixo, atiraram-no para aqui daquele pequeno bosque ao cimo da ribanceira. Ou podem-no ter deixado os homens que costumam andar a arranjar este troço da linha. Ou pode ser outra coisa qualquer. A minha mãe costumava dizer-me que eu tinha uma imaginação demasiado fértil; já o Tom dizia o mesmo. A culpa não é minha: basta-me ver uns farrapos largados, uma camisa suja ou um sapato abandonado e desato a pensar no outro sapato e nos pés que os terão calçado. O comboio sacode-se e chia e volta a arrancar, com o pequeno monte de roupas a desaparecer de vista, à medida que rolamos de novo a caminho de Londres em marcha lenta. Alguém atrás de mim solta um suspiro de desespero irritado; o comboio regional das 8h 04 consegue dar cabo da paciência até mesmo do passageiro mais cordial. A viagem deveria levar 54 minutos, mas raramente cumpre o horário: esta parte da linha está velha e decrépita, cheia de falhas de sinalização e obras intermináveis.
O comboio arrasta-se em frente; estremece por entre os armazéns e os reservatórios de água, pontes e barracões, passando por casas vitorianas modestas com as traseiras voltadas para a linha. Com a cabeça encostada à janela, fico a ver as casas a passarem por mim como num plano de um filme. Vejo-as como os outros não são capazes de as ver; provavelmente nem sequer os donos alguma vez as terão visto da minha perspectiva. Duas vezes ao dia, é-me oferecido um vislumbre das vidas dos outros, só por um instante. Há algo reconfortante em ver estranhos em segurança nas suas casas. Ouve-se o telemóvel de alguém a tocar, uma música incongruentemente alegre e animada. Demoram algum tempo a atender, e ela continua a soar e a cantarolar à minha volta. Consigo sentir os meus companheiros de viagem a remexerem-se nos bancos, a folhearem os jornais, a baterem nas teclas dos seus portáteis. O comboio dá uma guinada e inclina-se na curva, abrandando ao aproximar-se de um sinal vermelho. Tento não olhar para cima, tento ler apenas o jornal gratuito que me deram à entrada da estação, mas as palavras esborratam-se à frente dos meus olhos, não há nada que me prenda a atenção. Ainda consigo ver aquele pequeno monte de roupas na minha cabeça, atirado à beira da linha, completamente ao abandono.

O gin tónico de lata faz um barulho efervescente quando o aproximo da boca para dar um gole. Amargo e frio, o sabor das minhas primeiras férias com o Tom, naquela aldeia de pescadores na costa Basca, em 2005. De manhã nadávamos 800 metros até à pequena ilha no meio da baía, onde fazíamos amor nas praias desertas mais escondidas; de tarde sentávamo-nos na esplanada a beber gins tónicos gelados muito fortes, enquanto víamos os bandos de futebolistas de praia a disputarem jogos caóticos de 25 para 25 na areia molhada da maré baixa. Tomo outro gole, e mais outro; a lata já está meio vazia, mas é indiferente, tenho outras três no saco de plástico aos meus pés. É sexta-feira, por isso não tenho de me sentir culpada por estar a beber no comboio. Graças a Deus é sexta-feira. É quando a coisa se torna divertida.
Vai ser um belo fim de semana, é o que dizem. Um sol magnífico, o céu azul. Nos bons velhos tempos, íamos de carro até Corly Wood com um cesto de piquenique e os jornais, passávamos a tarde deitados num cobertor a aproveitar os raios de sol que atravessavam por entre as folhas das árvores, bebíamos vinho. Ou podíamos fazer um churrasco no quintal com os amigos, ou ir até ao The Rose e sentar-nos na esplanada a beber cerveja, com as caras rosadas do sol e do álcool, ao fim da tarde, antes de irmos para casa já tontos, de braço dado, para adormecermos os dois no sofá». In Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, 2015, tradução de José Leiria, Topseller, 20/20 Editora, 2015, ISBN 978-989-880-054-1.

Cortesia de Topseller/JDACT