O choque de falanges nas falas de Mensageiros
«A guerra decide-se no choque das armas,
quando os homens, actores-vítimas, medem forças e desempenham, para o bem e
para o mal, o seu papel em campo de batalha. Por contraste a mulher, naturalmente
arredada da acção, é uma observadora emocionada dos preparativos para o embate
ou dos momentos de lazer que, esporadicamente, aos guerreiros é dado usufrir. No
cuidado constante em fazer de quadros extracénicos, como são os do confronto de
exércitos, momentos dramaticamente bem sucedidos, Euripides vai utilizar
como seus relatores membros da comunidade guerreira. São da responsabilidade
enunciativa de mensageiros-narradores homodiegéticos os quatro retratos que do
choque sangrento de guerreiros nos lega a sua obra: Heraclidas 799-866;
Suplicantes 650-730; Fenícias 1090-1199,
1217-1263
e 1356-1479.
Para além de possuírem um porta-voz tipo, a figura do Mensageiro, todos
estes passos comungam ainda da particularidade de apresentarem uma estrutura
recorrente do ponto de vista temático e compositivo. As descrições de batalha
são, por conseguinte, cenas típicas de evidente inspiração homérica. Entende-se
melhor essa construção de quadros mediante a repetição de itens comuns através
de uma análise comparada dos diversos passos. Uma vez que este trabalho já foi
alvo da nossa atenção, limitamo-nos a retomar o esquema desse núcleo comum, por
forma a tornar mais nítida a análise pormenorizada que se fará dos referidos
momentos.
I - Preparativos: 1. sacrifícios
propiciatórios; 2. disposição das tropas para combate: a) referência separada
às duas frentes inimigas; b) disposição relativa das duas frentes.
II -Tentativa de evitar o confronto (para
não proporcionar o derramamento de mais sangue inocente): 1. pela palavra; 2. pelo
duelo;
III - Sinal de início do confronto: 1. pelo
silêncio; 2. pelo som da trombeta:
IV - Confronto: 1. Manobras; 2. choque: a)
l º embate; b) 1ª exortação à luta; c) 2° embate; d) 2ª exortação à luta;
3. desfecho: a) vitória de uma parte e derrota da outra; b) aristeia e/ou
androktasia de um guerreiro;
V - Comportamentos pós-batalha: evita-se
o saque e recolhem-se os mortos para lhes prestar honras fúnebres; agradecimento
à divindade pela vitória, erguendo um troféu de guerra a Zeus; despojar dos
inimigos; recolher dos corpos para posterior prestação de honras fúnebres.
VI - Sentença final: a funcionar como
moralidade ao relato acabado de fazer (a inconstância da fortuna; elogio da sophrosyne
e condenação da hybris.
Estas longas falas têm uma motivação textual
e factual que as torna naturais no contexto do teatro. Sob o ponto de vista
discursivo elas são sempre antecedidas por um diálogo do mensageiro com outra
personagem, através do qual se apresenta o assunto das mesmas. O factor suspense inerente ao relato de qualquer
evento não presenciado, não reside, pois, nos factos em si, mas no modo como é
apresentada a sua concretização. Uma vez que o espectador conhece a lenda mas
ignora a forma como Eurípides dela se apropria, estes relatos funcionam
como um factor de aumento de dramatismo. O mensageiro encontra a necessidade da sua fala explicativa num
claro pedido do interlocutor para uma narrativa pormenorizada dos
acontecimentos acabados de enunciar. Conhecer é um acto visivo; não chega
saber, é preciso ver, nem que seja através
dos olhos de outrem.
A linha condutora da nossa reflexão estará
na modulação técnico-compositiva e estilística colocada pelo poeta nestes
trechos de natureza predominantemente informativa. Aspirando sempre a seduzir o
público para um espectáculo sem dúvida doloroso, mas capaz de fazer apelo a uma
diversidade de sentimentos (entusiasmo, empatia, repulsa, admiração ou
pena-sofrimento), o poeta procura transformar uma fala a priori fadada à
monotonia num momento de variatio discursiva e sinestésica. Para essa
vivacidade do texto muito contribuem a compresença e alternância do discurso
directo com o indirecto, a variedade de tempos e modos verbais, a emergência do
eu-emissor e do tu-destinatário (factores por excelência da personalização do
texto). Num relato cuja longa extensão pode funcionar como elemento de
dispersão, de todos os artifícios técnico-compositivos os apelos explícitos ao
destinatário e o uso da interrogativa retórica são os que têm uma capacidade
mais imediata de despertar o ouvinte. Por se tratar de passos extensos e que
exigem uma reflexão relativamente demorada, não nos é possível apresentar o
estudo dos quatro passos em conjunto. Abordamos agora as falas de Heraclidas
e Suplicantes, pertencentes à mesma peça {Fenícias),
e, portanto, com mais afinidades entre si.
Heraclidas
799-866.
Já se encontra disposta frente a frente e
pronta para o combate a infantaria dos dois exércitos, quando Hilo avança para
o meio do campo de batalha. A descrição faz-se, segundo uma técnica cinematográfica tão do agrado do poeta, partindo
do geral para o particular. Após um grande plano do objecto descrito, o campo
de batalha, o sujeito da enunciação centra o seu foco num agente individual, o
Heraclida. Note-se a preocupação cénica
do narrador em fornecer coordenadas espaciais capazes de funcionar como didascálias de um quadro apenas
oferecido à imaginação do seu auditório: nós
colocámo-nos uns de frente para os outros; Hilo desceu da sua quadriga e pôs-se
de pé no meio dos dois exércitos». In Carmen Soares, A Descrição do Exército em
Eurípides, O Choque de Falanges nas falas de Mensageiros, Revista Humanitas,
volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.
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