1805
- 1806
«(…)
Como a ordem do patriarca eta para cumprir, Mariana voltou ao seu lugar dentro
da berlinda, de frente para a mãe, e apoiou os pés no tijolo que lhe fora
designado. Nuna, que lhe sorria compreensivamente, viajaria no interior da carruagem,
com as outras mulheres. Seria de uma extrema crueldade obrigá-la a enfrentar o
frio do exterior seguindo ao lado do cocheiro. As outras três criadas tinham
sido entretanto chamadas da cavalariça, ligada à rua por um pequeno pátio.
Tinham-se posto aos cochichos desde a notícia da partida. Aida chorara por
causa do seu namorico tolo com o açougueiro, Gracinda guinchara de excitação
assim que se apanhara sozinha e Maria uivara de dor por causa dos pais, tudo
convenientemente afogado no isolamento da copa, por entre selhas de roupa para
tingir e tinas de água fumegante. Seguiriam num veículo mais pequeno e menos
seguro, conduzido por um cocheiro mais velho, que trabalhara para o pai de
João, e que tinha a incumbência de ficar com elas no Douro. João contrataria
outro cocheiro para substituir o jovem e robusto Jaime, prematuramente
desdentado, que conduziria as suas preciosidades até ao Porto. Seria uma
brutalidade exigir que o velho Moisés regressasse com a carruagem, que ia carregada
com os pertences das fidalgas. O velho apartar-se-ia da única filha, que vivia
com o traste do marido sobre uma taberna, e findaria os seus dias nos socalcos
das vinhas a norte. A tristeza era-lhe tamanha que respirava pesadamente, como
se escorregasse já para uma morte solitária.
Pegou
nas rédeas e esperou, pacientemente, que Jaime recebesse a ordem de avançar com
o primeiro veículo. Mais adiante, quando sairdes de Lisboa, deixai o Moisés
seguir à frente. Desse modo evitais emboscadas para as senhoras, entendeis? Sim,
vossa graça. O resto da criadagem exibia-se alinhada na soleira que dava para o
pátio, com as mãos enroladas nos aventais devido ao frio, e acenavam às senhoras
da casa. Tudo perderia agora o seu encanto. Seriam serviçais de um enfermo. Com
uma palmada na lateral do veículo, João virou o rosto às lágrimas que Sofia se
esforçava por esconder atrás de um delicado lenço de linho bordado e à
expressão pasmada de Mariana, que não interiorizara realmente que não voltaria
a ver o pai. Os seus olhos assustados poderiam ser a última coisa que veria
dela.
Quase
três horas depois, à saída de Lisboa, a atrelagem de quatro cavalos conduzida
por Moisés passou-lhes à frente e a sua carcaça de madeira preta com motivos
dourados vegetalistas passou a ser o seu ponto de referência durante as
desconfortáveis horas que se seguiram. Nem o veludo negro que forrava o
transporte tornava o bambolear da caixa menos incomodativo. A mãe adormeceu no
primeiro quarto de hora, de boca deselegantemente aberta, e pôs-se a soltar uma
respiração ruidosa que muito a distraía dos seus pensamentos. Não despertara sequer
quando, antecedido de um lá vai água,
um jacto caiu ruidosamente sobre o tejadilho do veículo ao passar por uma rua
do Rossio, escorrendo em seguida pelo vidro onde a mãe tinha o rosto encostado sem
a sobressaltar. Parecia que Sofia arranjava sempre forma de se imiscuir na sua
liberdade, quer fosse impedindo-a de descer a escadaria de madeira maciça da
sua casa à velocidade que pretendia, porque podia partir o pescoço e o seu
casamento tornar-se-ia estéril, quer fosse porque queria pôr as ideias em ordem
e a senhora delicada e de trato impecável que se apresentava nas reuniões
sociais punha-se a ressonar como um velho pescador ao sol. Observou-lhe as mãos
cruzadas no regaço e os pés abotinados, pousados no tijolo que esfriara há
muito. Sabia que, nesse primeiro dia, teriam de se acomodar como pudessem. No
segundo dia seriam recebidas por uma prima, no Buçaco. Melancólica, enregelada
e vazia por dentro, por se ter separado não só
do
pai como de Lisboa, quis que o sono a tomasse com felicidade com que fizera a mãe
sucumbir-lhe. Doía-lhe o peito devido ao aperto do espartilho, ainda que a sua
mãe tivesse sofrido muito mais na juventude, quando o mesmo tinha tantos cordões
que era praticamente impossível que uma mulher respirasse. O seu olhar,
contudo, não conseguia desviar-se da carta que o pai entregara a Sofia e que se
insinuava na sua sacola de mão. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria acesso
àquelas palavras e, sem mais, estendeu a mão agilmente e cingiu o papel nos dedos.
Com um único olhar dirigido à mãe, que se contorcia num sono atribulado, abriu a
folha que o pai dobrara e depositara num envelope». In Célia Correia Loureiro, A
Filha do Barão, 1809, Marcador Editora, 2013/2014, ISBN 978-989-754-039-4.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT